quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Pornopopéia - nem sempre

Nem sempre. Na verdade, a noite transluzia e fluía leniente ao sopro de brisas gélidas que perfuram a alma e o corpo como agulhas. A atmosfera liquefazia-se nessa transparência lúcida e aparentemente impoluta que carregava o ar. Noite vívida. E o céu rejubilava-se em sua imensidão infinda. Apenas algumas nuvens se condensavam como esperma e se dispersavam, tímidas, despretensiosas. Sem receios. Sem anúncios de futuras tempestades. Mas os ventos dançavam em redemoinhos inofensivos e invisíveis, invadiam as janelas e varandas por entre os dédalos de concreto armado, e iam incomodar seus moradores sonolentos e os insones e zumbis de madrugadas como esta. Madrugadas como esta coincidem com uma boa programação na TV, para estimular a concorrência. Deixo de observar o céu reluzente sem estrelas e volto à TV. Mas Jô não me estimula, seu humor sem exageros e sua postura galante me agradam, mas não estou a fim. Repasso os canais pela terceira vez, os mesmos canais, os pastores pregam a palavra divina com todo fervor e ascetismo, jovens rapazes caçam vampiros noite adentro, entrevistador e entrevistado se olham sem saber o que falar, enchendo lingüiça com as mesmas perguntas e com as mesmas respostas, e a indecisa MTV, entre vinhetas críticas e propagandas de celular, exibe clipes de bandas clássicas – ABBA, Blondie, Clash. Não há putaria, e eu chego à conclusão frustrante do quanto a TV aberta é obtusa e pouco diversificada. É como se minha mente se estruturasse a partir dos programas: se eu não tenho muito o que falar, se tenho pouco assunto, não existe grandes possibilidades de sociabilização. E o pensamento é monolítico, além de escasso.

No céu, as nuvens roseaplúmbeas escorrem monótonas na imensidão, transfiguram-se em imagens pareidólicas, incertas. Sinto-me transfundir na paisagem; não tenho alucinações e o céu e as nuvens não são reflexos absolutos do meu estado de espírito, mas ambos se compactuam numa acintuosa ficção de palavras e sensações. Começo a me excitar. A noite exalta os espíritos libertinos.

Nas ruas venais lá embaixo, o silêncio e a escuridão engolem tudo. Um único murmúrio reminiscente – não sei se produzido na mente ou se são ecos reais – do que foi o tumulto tonitruante, o rosnar dos automóveis, o tilintar de pratos e talheres, e garrafas ou as últimas conversas e gargalhadas dos bêbados. O silêncio ressalta os ruídos anônimos e ignorados, dos insetos, dos postes de iluminação (a luz faz barulho), dos ventos em redemoinhos. Ruídos constantes, mas imperceptíveis para os transeuntes apreensivos e atarefados do cotidiano convencional. Não surgem apenas em madrugadas silentes e ociosas como esta; estão aí, sempre, do lado de fora, emitindo suas ondas sonoras que se distinguem quando recebida a devida atenção. Alguns zumbidos de carros fazem-se soar, esparsamente, lá embaixo. Os últimos carros? Para onde vão, de onde vêm – não sei. Não importa. São apenas detalhes que percebemos quando há silêncio e escuridão por toda parte, quando não há nada e a certeza imponderável, mas insistente de que não há nada. O silêncio ressalta a respiração. E os pensamentos parecem falar mais alto. Quando não há nada do lado de fora para se perceber, percebemos nosso íntimo; nossas entranhas clareiam-se, se mostram em muitos de seus segredos; e todos os nossos sentidos aguçam-se inutilmente para sentir o nada, como se procurassem algum pragmatismo no vazio (pré)conceitual das coisas. Isso pode ser frustrante quando descobrimos que não há proveito nenhum para se tirar. É quando o ócio se manifesta sem o típico prazer de se omitir das responsabilidades (e aí, sentimos que precisamos delas); ou quando não há muito que fazer, e a cama ainda é a última opção. Procuramos um passatempo, nessas horas. Qualquer que seja. Talvez, por isso, os pensamentos sejam revelados e relevados e pareçam mais gritantes, mais intensos, mais claros. Mas eu não estou a fim.

Primeiro, parecem surgir inevitavelmente e, normalmente, vão tomando conta do corpo e da mente. Substituem qualquer outro pensamento e vão se alastrando. O espírito libertino acorda, numa volúpia que se intensifica cada vez mais; excito-me, tenho vontades e desejos. Mas nem sempre. Estou cansado, talvez. Os pensamentos, no entanto, batucam, insistem, as imagens surgem, sem espalhafatos, mas sem promessas de se irem embora. É o tédio. E tudo quanto ele representa e o que me faz lembrar. Preocupações, responsabilidades, tudo que me apreende no dia-a-dia dos dias. Mas não é isso ainda. Nem sempre. Não estou a fim. Desabotoou a bermuda, afasto a cueca e deixo meu pênis respirar livre o ar em abundância da nossa atmosfera. Observo-o, está flácido como um molusco, sem sinais de vida, sem pulsação. Respiro e vejo que se mexe, indolentemente. Nem sempre. Mas não estou a fim. A volúpia parece obstruída em alguma parte da alma, não consegue atingir o corpo para fazê-lo estremecer e inflamá-lo em excitação. Não há vontade. Não há tesão. Só os corpos que minha mente incontrolável vislumbra diante de mim, numa profusão surreal de imagens eróticas, pornográficas, de garotas em posições obscenas, fazendo gestos obscenos. Quanto mais reluto em pensar alguma coisa, mais penso nela e não consigo parar. Não me importo, mas. Nem Sempre. Não estou a fim. Obscenidades. Elas não têm nomes, não têm identidades, não importa quem são, são como putas. Mas são irreais. Imateriais. Apenas carcaças, bonecas obscenas, brinquedos de sexo, seres-máquinas animados. Essa superficialidade me excita; os corpos despidos, inorgânicos, vazios, incertos, pronunciam-se em minha mente. Massageio-me, como se espalhasse o tesão pelo corpo. Seguro meu pênis e exercito-o; ergue-se, infla-se. Masturbo-o. Ainda uma vaga corrente de volúpia, inconstante e incerta, corre meu organismo. Tenho muitos fetiches, e muitas imagens obscenas implodem, rebentam na mente. No entanto, ainda não sinto a tensão voluptuosa provocada pelo tesão. Masturbo-me, mas num exercício mecânico, com o objetivo de manter o pênis aquecido e ereto. A tensão, agora, parece crescer e eu tenho leves ímpetos de volúpia. Um acesso de libertinagem me acomete.

É quando minhas tensões psicológicas são dissipadas e entro num estado de volúpia; meus valores são desvalorizados, tudo o que minha cultura me condicionou é destituído de seu valor. Cresci sob o moralismo ralo de uma família tradicional de classe média, os valores incutidos em mim, mesmo vagos, corroboram para a formação de alguns medos internos. O prazer de desafiar e superar esses medos são-me excitantes. Sinto o prazer, o prazer de transgredir, de violar os preceitos morais da minha família, da minha própria personalidade condicionada e adaptada ao cotidiano. Nessas horas, me desfaço de mim, da máscara que me imponho e que me amedronta, que me deixa acuado. A obscenidade é um discurso corrosivo que uso para subverter meus próprios valores, minhas próprias idéias. É a minha perversão no sentido doentio da palavra. Mas quando me domina, perco minhas noções de certo e errado, sinto apenas um chamuscar de pecado e sujeira na alma, mas isso é ainda mais excitante. É isso que chamo de libertinagem, o momento em que me excito por me libertar dos valores e me transferir para um mundo depravado e obsceno. Essa libertinagem tem seus níveis, e quanto mais me desfaço das concepções estético-culturais e dos valores morais em mim embutidos, mais excitante tudo fica. No entanto, isso tem um preço que desconheço, mas pago quando menos espero. Há os seus momentos: quando as incertezas são descartadas, não substituídas por verdades cabais, mas escamoteadas, relegadas. Desaproprio-me delas e tudo o que fica é um vazio receptivo a tudo, a novas concepções, ou melhor, às transformações conceptivas. Toda estética estipulada por conveniência pública é, por instantes, abstraída. É isso que acuso de libertinagem. E não o faço por crítica negativa. Mas não consigo me libertar, deliberadamente, de todos os valores. Nem sempre. Não estou a fim.

No entanto, esse acesso de libertinagem é de nível primário, não tendo efeitos impactantes. Ainda procuro na TV algo que me chame atenção, mas Jô continua galante diante dos entrevistados; o pastor ainda discorre fervorosamente sobre os valores cristãos e a participação individual na igreja, assim como a importância de exercer os preceitos de sua religião e de como adaptar suas práticas dogmáticas ao cotidiano; em outro canal, o entrevistador continua a tentar prolongar a conversa na madrugada – maçante. Mas é tudo ainda muito obtuso, estreito, monótono e sem variedades. Meu pensamento continua singular. Mas as imagens obscenas pluralizam-se. É como um vício. Nem sempre. Não estou a fim. Preciso de imagens reais, não mentalizadas. A TV não dispõe disso.

Eu quero, mas não quero? O céu sem estrelas é imperceptível, mesmo em sua imensidão e transparência. Percebo isso. Já o havia percebido. Não há cintilância natural na paisagem; os postes que iluminam as ruas têm suas luzes constantes, mas não brilham, são imóveis, mecânicas, não possuem a inconstância vivente da natureza. E o que isso me importa numa vida de superficialidades como a minha? O que isso importa quando me masturbo pensando em corpos femininos, em genitálias, em obscenidades e não em garotas reais, vivas? Merda, a TV nunca está sintonizada em meus desejos. Não que eu não goste de pensar, de criar situações enquanto me masturbo, mas não é esse o caso agora. Simplesmente não quero isso e preciso ao menos de imagens reais, que não estejam embaçadas pela imprecisão do pensamento. Não acho que quero sexo; masturbar-se não é uma alternativa última que escolhemos para suprir a necessidade do sexo. Aliás, o sexo não suprime a vontade de masturbação. A masturbação não é exatamente uma assimilação do sexo. A verdade é que não sei bem o que quero. Espero da TV qualquer coisa que me agrade, mas tudo quanto poderia fazê-lo não o faz na hora certa – mesmo que o fizesse. Quando estou sóbrio, lúcido, escusado da volúpia sexual que acomete meus sentidos, e quando estou, principalmente, revestido de meus valores cotidianos, posso fazer críticas negativas à TV e tudo o que ela representa e mostra. Percebo que, em horas como esta agora – não sei se pela deturpação causada pelo meu estado mental – que tudo quanto uso como ataque não passa de opinião e argumento manjados de um público unânime. Acho que isso se chama hipocrisia e eu faço parte dela. Quando estou com minha mão no meu pênis, tudo quanto é valor moral é desmistificado – eu aceito isso. Por enquanto, talvez. Nem sempre. Porque ainda me sinto sujo e prostrado. Não estou a fim, talvez. Vício, talvez. A TV não mostra o que eu quero ver, talvez. É uma dúvida constante, talvez. Nem sempre, talvez. Mas a pornografia estimula os sentidos e descartam as incertezas – passo a perceber o mundo a partir dos meus próprios sentidos e de um raciocínio lógico condizente a eles. Todos os valores são desvalorizados e não os transponho; deixo que tudo dependa do tempo conceitual e das imponderações da vida, mesmo que estas sejam descartadas. Não digo como um livro de auto-ajuda diria, nem com os mesmos valores ou o mesmo jargão de uma pseudopsicologia barata – e não deixo que seja algo como: “ah, que tudo aconteça como tem que acontecer, pensamento positivo, bola pra frente”. Porque. Nem sempre. Eu mesmo me confundo quanto a isso, por isso me masturbo. Por isso descentralizo-me, desfiguro-me para me naturalizar a partir do meu instinto sexual. Aliás, Freud explica. E me desfaço de muitas concepções. Penso que a Virgem Maria não era virgem, penso que Cristo fodeu Madalena, penso que Adão e Eva praticavam incesto, já que eram irmãos (ela saiu da sua costela, suponho que tenham o mesmo sangue, ficcionalmente), penso que o mundo rebentou, veio à luz, de um divino ventre fecundo, no qual Deus ejaculou e semeou com seu esperma divino, ou talvez ele o tenha feito em si mesmo por reprodução assexuada – e se Deus fosse uma célula?

O orgasmo se aproxima pulsante, embalando respirações e pensamentos; um delicioso estremecer no corpo o precede. E assim o mundo apaga-se, as luzes da cidade se apagam, a imensidão infinda do céu, as dúvidas e imponderações da vida, a própria vida, a opinião pública, Jô galante, os pastores fervorosos, os entrevistadores e entrevistados, as músicas na MTV indecisa, as questões filosóficas, existenciais, epistemológicas, ontológicas, tudo se dissipa na hora culminante, numa vertigem inexorável. A cabeça, então, gira, a visão escurece, o corpo prostra-se: e eu gozo tudo na minha mão. O esperma viscoso escorre lentamente e se dissipa, entre os dedos, entre as virilhas, assim como o fazem, lá no céu, as nuvens roseapúmbleas dessa madrugada translúcida, fria e silenciosa. Extenuado, fico a cingir o falo, escorregadio, pegajoso, enquanto me recupero. Nem sempre. Não estava a fim.

sábado, 19 de dezembro de 2009

pornopoesia - culto fálico


mãos punheteiras, visão plasmática, profusão de imagens imateriais, impalpáveis, unirreferenciais. obscenidade. corpos plurivarginais, mente extática, mundo estático.
bocetas - mulheres plurianais, multiorgasmáticas, pleniextasiantes - sou contemplado contemplador.
falo pulsante, túrgido, penetrante, contundente. grotesco. obsceno. pornopsique. pornocompulsão. masturbação. putaria.
minha plenipotência sofre infusões e implode em êxtase orgástico dentro da cabeça – volúpias e vertigens. a vista difunde.
e eu gozo tudo nas mãos.


terça-feira, 1 de dezembro de 2009

If..., um filme de Lindsay Anderson.



Vira e mexe me vejo pensando em Malcolm McDowell (alguma espécie de paixão platônica?) e em como ele atua bem (já perceberam?), sempre com algo de sarcástico e mordaz. Fui procurar algum filme interessante em que ele protagonizasse e eis que encontro Se..., de Lindsay Anderson. Li a sinopse e pensei: “ora, típico do Malcolm! Vou ver!” E vi.

Me surpreendi. Aliás... em que filme a carreira dele decolou mesmo? Laranja Mecânica? Não?

Rapaz, que filme interessante! Muitíssimo interessante, bastante contundente para a época! If... retrata bem o espírito rebelde que encarnara na juventude explosiva (e que isso sirva como uma alusão ao próprio filme) de 60. If... foi feito em 1968, numa época em que se alastrava pelas ruas, pelas escolas e universidades, as mais controversas idéias da contracultura. O tradicionalismo esclerosado e medíocre em que estava sustida a sociedade fedia e dele já não rebentava nada. E contra isso, as novas gerações lutaram energicamente.

E nesse contexto, a arte tentava das suas façanhas. Na França, Godard e amigos inovavam toda a linguagem cinematográfica, desde a estética às abordagens temáticas, e contribuíam com sua crítica ao tradicionalismo, ao convencionalismo e a tudo que perpetuava numa estagnação social. Sem precisar repetir (e repetindo) que o cinema francês foi o mais incendiário nas idéias e nos experimentos, Lindsay Anderson, no entanto, deixou também uma marca na história do cinema para os ingleses. E nada mais agressivo e transgressor que uma crítica à instituição educacional do país e seu sistema de ensino obsoleto e inefetivo.

1. Casa escola – Retorno...

A estória começa com o retorno às aulas e nos apresenta os personagens, quem é oldschool e quem é novato. E sob a mesma ótica, duas gerações de alunos se fazem narradas: a turma avançada de Mick, e a turma das crianças.

Tudo parece normal nesse começo, a euforia das voltas às aulas, a timidez e reclusão dos novatos, a frustração por estarem retornando, algumas amizades já bem desenvolvidas, e a espontaneidade dos oldschool. É impossível identificar o que há de errado, mas essa atmosfera recende à mediocridade. Vez ou outra, algum antigo aluno resmunga algo contra o retorno às aulas. “Tudo de novo”, alguém diz, tudo de novo.

Essa atmosfera de habitualismo vai se revelando e se transformando na verdadeira ignomínia que é aquela instituição. E isso se revela desde a exploração de crianças e o homossexualismo pedófilo dos coordenadores até a incompetência e o descaso hipócrita dos diretores e superiores. Os alunos, naturalmente, adaptam-se como podem a essa realidade.

“Quando começamos a viver? É tudo o que quero saber”, Mick. É então que começa a cair a ficha e percebemos que saberemos o que eles, os personagens dessa estória, sabem.

2. ESCOLA – Mais uma vez reunida...

Reunidos na igreja, todos cantam quase em meticulosa harmonia, como uma orquestra, dentro de um regimento convencional marcante em todas as horas do internato. É tudo uma rotina severamente moldada.

Algo que me interessou particularmente nesse capítulo foi uma cena em que o professor de História da turma de Mick faz uma insinuação desmascarada e contundente quando sugere algo de superficial e demasiado simplista na interpretação positivista da História, nas suas aulas rotineiras. Essa insinuação é escamoteada pela falta de visão crítica dos alunos, que aparentam perturbação ao ouvir idéia tão inédita.

Logo depois, o professor de matemática das crianças dita princípios da geometria sem qualquer compromisso quando, de repente, para e esbofeteia um aluno qualquer. Caminha mais um pouco, proferindo alguns outros princípios e ataca outro aluno.

3. Tempo do período

O golpe aqui é dado quando se revela, num tom conciso e frio, a prática homossexual e pedófila por parte dos coordenadores. Philips é um dos garotos da turma mais nova, é alto e convenientemente bonito, mantém uma postura sempre cavalheiresca e, com seus cabelos dourados e sua face suavemente modelada, infantil e límpida apesar de bem aparentar seus 17 anos, é encantadoramente delicado. Philips trabalha como uma espécie de acólito para todas as horas para Rowntree, um dos coordenadores. Rowntree, após dispensar Philips por hora, troca algumas palavras com seus amigos coordenadores. Um deles confessa estar morrendo de inveja do amigo por ter Philips como seu próprio efebo, e outro acrescenta: “Sabe o que o Patridge de Haig House me disse? ‘Por que não nos manda o Bobby Philips numa dessas noites e nós te mandamos o nosso Taylor?’”.

Essa perversão é repelida por Richard Denson, outro coordenador (mister dizer que o mais carrasco para Mick), que defende a atitude exemplar. E acrescenta: “ademais, essa paquera homossexual é algo tão adolescente”. Rowntree, para contradizê-lo, chama de volta Philips e o avisa que a partir de então “será subordinado ao senhor Denson”.

Neste capítulo, Mick revela seu instinto belicioso e insurreto. “A violência e a revolução são os únicos atos puros”, diz. E por entre as leituras aleatórias que ouve de seu amigo e goles de bebida alcoólica, acrescenta: “A guerra é possivelmente o último ato criativo”. Depois, todos saboreiam a imagem de uma modelo na revista, e Mick diz com palavras misteriosas: “Só há uma coisa que se pode fazer com uma garota assim: caminhar para o mar junto dela, sem roupa, enquanto o sol se põe, fazer amor uma única vez... e então morrer”.

Aqui também vemos ser alimentada a raiva de Mick contra Richard Denson, os coordenadores e tudo o que eles representam e contra a própria instituição escolar.

4. Cerimonial e Romance

Por outro lado, Mick demonstra sua poeticidade bélica enquanto luta esgrima com os amigos. Mick ironicamente representa a Inglaterra e a suposta liberdade que ela pressupõe. A brincadeira toma rumos mais agressivos e termina machucando a mão de Mick que exclama surpreso, mas contente: “Sangue! Sangue de verdade!”

E o ápice do ridículo e da hipocrisia é quando é dado um aviso de que a torcida na escola tem sido fraca e pedem que os alunos torçam com vontade no jogo à tarde. Na sequência, a gritaria ávida de torcedores fanáticos toma conta do campo em que jogam dois times. A necessidade de manter as aparências, mesmo que internamente as entranhas pareçam fétidas e arruinadas, é exposto ao extremo, descaradamente, para os alunos e nós, espectadores.

É também neste capítulo que rebenta uma das cenas nonsense. Mick e um amigo se divertem na cidade, aliás, a única cena no exterior da escola. Depois de roubarem uma motocicleta de uma loja, Mick e o amigo vão a um café. Lá Mick tenta beijar a balconista e é esbofeteado. Depois, de maneira esquisita, reconciliam-se e se amam selvagemente, imitando tigres, atacando-se com as unhas e se mordendo. Afinal saem na motocicleta Mick, o amigo e a balconista no meio e em pé, como jovens rebeldes depois do amor.

5. Disciplina

A disciplina comedida que deveria manter os alunos da escola é quem oprime e os impele à transgressão. Os coordenadores decidem tomar medidas extremosas e agressivas contra essa transgressão e conseguem obter a permissão almejada. Mick e seus dois amigos são os primeiros.

Essa é a sequência mais tensa e humilhante do filme. Não entendo como Mick se deixa submeter a essa humilhação. Depois de avisados sobre o castigo, são imediatamente levados ao ginásio onde se realizará a punição. Mick e os amigos esperam enquanto um por um é chamado e chicoteado na frente de todos os coordenadores. Durante todo o momento, a cena não recebe cortes e apenas ouvimos os açoites enquanto Mick espera sua vez com um amigo. Mick é o último... e o mais severamente punido. Sua postura insurreta e sarcástica é desmoronada diante dessa humilhação. Lágrimas escorrem pelo rosto. Enquanto os outros dois amigos receberam quatro chicotadas, Mick ultrapassa esse número. Todo mundo escuta os passos que precedem o som dos açoites e todos imaginam a dor que Mick sente. Afinal, Mick ainda deve pedir “obrigado” ao coordenador que o açoitou.

Talvez isso tudo tenha servido para canalizarmos toda nossa raiva para que justificarmos as próximas cenas. A “resistência”, o “contragolpe”, e toda a revolta.

6. Resistência
“Um homem pode mudar o mundo com uma bala no lugar certo”, Mick.

Mick e seus amigos planejam a vingança. Essa vingança pode ser trazida a um contexto mais atual, ao incidente de Columbine. Retificados alguns pontos, a sequência é quase uma predição do que aconteceria em Columbine. De um lado, a humilhação física e psicológica de uma instituição opressora e hipócrita; de outro, a opressão física e psicológica de uma sociedade omissa e negligente. If... é um filme que se estende até os dias atuais de uma maneira quase profética. Pois até o bullying de hoje não é uma conseqüência das mudanças, mas uma herança daqueles tempos.

7. Adiante à guerra

O primeiro sinal de que os rumos convergiriam a um final trágico é dado agora. Alunos e professores simulam uma guerra por entre os bosques da escola, fardados e armados, em contingentes realisticamente estruturados, seriamente comprometidos com as estratégias. Tudo contribui para crermos numa guerra real. Até que Mick e os amigos “desertam” dessa encenação ridícula e arruínam qualquer plano estratégico de seu suposto batalhão. Chega a ser engraçado como a cada novo encontro com o inimigo, Mick e os amigos “morrem” ou simplesmente ignoram a situação. A seriedade depositada nessa simulação chega a ponto de um professor se gabar por ter assassinado Mick e os amigos. Ainda chega a pedir para que caiam, para que se joguem no chão, simulando suas mortes.

O susto vem quando Mick e os amigos assustam, atirando com balas de verdade nos contingentes que descansam, depois de finalizados os exercícios e a simulação. Todos se desesperam e se jogam no chão, exceto o reverendo que os encara e ordena que se desfaçam das armas. Mick e os amigos saem da moita, mas não se “rendem”. Mick aproxima-se do reverendo e aponta a arma para ele. Dispara. O reverendo cai. Pensamos: “minha nossa!”, novamente Mick dispara. E assistindo ao reverendo se contorcer comicamente e se debater no chão, Mick o ataca com a baioneta. Não há sangue, mas... não soube dizer o que viria depois.

Decerto não houve morte, nem ferimentos. O diretor da escola censura Mick e os amigos e após pedir que se desculpem do reverendo, abre uma gaveta de onde o próprio reverendo se levanta para apertar a mão de cada um. Nonsense. Com um discurso enloquente, pronunciado pelo diretor, quase nos convencemos de que um final feliz e compreensível vem por aí. Engano. A punição não é tão severa quanto se imaginava. Mick e os amigos são destinados a um trabalho gratuito, mas simbólico, apesar de necessária a força física. Enquanto Mick e os amigos limpam e organizam depósitos esquecidos da escola, encontram armas e explosivos reais que servirão para o desfecho do filme. Curiosamente, a balconista também os ajuda nessa tarefa de limpeza.

8. Cruzadas

A cena a seguir é o enquadramento da bandeira inglesa esvoaçando austeramente no mastro, repassando uma idéia clara e irônica de patriotismo. E em meio a um formalismo pré-ensaiado, um séquito medíocre recebe o General Denson, figura notoriamente conservadora, que dizem ser um herói da pátria. Também encontramos o Bispo, com todos seus adornos representativos e seu cajado suntuoso na mão. E, por último, o príncipe inglês, trajando uma armadura metálica medieval, com o capacete na mão, numa postura rigidamente ereta. Essas três figuras formam as égides decrépitas do tradicionalismo miasmático inglês e consolidam no filme a idéia de uma sociedade regida por grupos representativos altamente arcaicos e esclerosados. E sob essas égides, se escondem e se glorificam pomposamente os sectários desse tradicionalismo, como demonstram as imagens que se sucedem enquanto o General Denson, já na igreja com os outros, profere um discurso caloroso sobre a necessidade de se manter as tradições. Vemos as faces dessa sociedade geriátrica, as senhoras idosas cheias de adornos, homens austeros, pais e mães dos alunos e finalmente os próprios alunos (que tudo sabem sobre a verdadeira face de sua escola). E essa figura cheia de empáfia e regramentos que é o General Denson não percebe quando, em meio ao discurso, uma fumaça sobe provocando tosses nos espectadores e interrompendo a cerimônia.

Este é o momento-símbolo do filme: Mick e seus amigos disparam suas armas pesadas impiedosamente contra a sociedade arcaica. Todos os significados que não encontramos ou não entendemos no decorrer do filme, se apresenta aqui sem véus nem omissões. É a luta entre o novo e o velho, o confronto entre a nova geração e a velha geração. E a palavra de protesto que se revela nas armas de Mick, contra a opressão, a hipocrisia, a indiferença e até mesmo a corrupção.

Afinal, todos pegam em armas. Senhoras atiram extáticas, clamando por violência, o General Denson, os pais dos alunos e todos os representantes da sociedade. Mick, encarnado por Rambo, atira embevecido com sua metralhadora. E fim.

Mick:

Mick me parece, por vezes, fruto da tapeação e dos erros de cálculo da instituição escolar. Ele não ostenta a singularidade moral de um líder revolucionário nem a mentalidade madura, sagaz, fria e calculista de um grande gênio rebelde. Mas ele parece conservar a frivolidade de um rebelde do rock’n roll, pretensioso e inconseqüente. É por isso que sua natureza não se constitui de uma genialidade autêntica, dos grandes líderes, mas se faz apenas de instintos perceptivos, da capacidade de sentir a opressão e do desejo de alcançar a liberdade aparente. Sua natureza, na verdade, foi condicionada à transgressão, ao desejo de ultrajar regras e conveniências. E a culpada é exatamente instituição escolar e seu desequilíbrio idôneo.

Não digo que o Mick é um personagem negativo, por causa de sua falta de originalidade. Não. Ele é original, sim, justamente na sua natureza perceptiva. E logo que descobre um sistema corrompido e cheio de falhas, torna-se uma conseqüência desse sistema, e aí se encontra a transgressão.

Apaixonado por imagens de soldados, de guerras, de destruição, a parede do seu quartinho particular é adornada com vários recortes de revistas sobrepostos. Essa profusão de figuras, não só bélicas, mas imagens de fome e miséria, de bebidas etc, corrobora para a imagem de adolescente impulsivo que temos de Mick. Nesse mesmo quartinho, Mick e seus amigos fumam, bebem e conversam extravagâncias e trivialidades.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Quando você come moralismo e caga hipocrisia (Uma crítica a você, cidadão)

Critiquemos a política.
Critiquemos o desmatamento.
Critiquemos as ruas e a segurança,
Os assassinos e a polícia.
Critiquemos a desigualdade e a discriminação e
critiquemos as políticas afirmativas.
Critiquemos o terrorismo e
critiquemos, também, os Estados Unidos.
Critiquemos a sujeira, o lixo, a lama,
a poluição.

Critiquemos você, cidadão.

Critiquemos o país, o mundo, a sociedade inteira
Por viver de hipocrisia à sua maneira.
Critiquemos a mídia, a televisão, as imagens,
a violência, a vulgarização.
Critiquemos a pornografia, as mulheres, a prostituição.

Critiquemos você, cidadão.

Critiquemos a tecnologia e tudo o que ela propicia.
Critiquemos o avanço, a maquinização das coisas.
Critiquemos a concretude ortogonal que se ergue pela cidade
Como monstros implacáveis.
E, vá lá, critiquemos a ciência e a religião.

Critiquemos você, cidadão.

Critiquemos você aí sentado,
De cara pra TV ou pro computador,
Não sem certa empáfia,
Criticando a política, a mídia, a pornografia,
a segurança, a poluição, o desmatamento, a sujeira,
o país, o mundo, a sociedade inteira
por viver de hipocrisia à sua maneira.
Critiquemos, ao mesmo tempo, Geisy Arruda e a Uniban,
os alunos e o Taleban.

"Poesia rima com hipocrisia", Laurinha.

domingo, 8 de novembro de 2009

O baque na realidade

Não foi com lágrimas nos olhos e a vista difusa que terminei Cem anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, pois em mil outras páginas desse livro eu pude - e motivo não faltou - chorar minhas emoções e não o fiz. No entanto, foi com o corpo trêmulo e o coração apertado que fechei esse livro e senti, então, o baque da realidade caindo em peso, como tantas vezes, ou sempre aconteceu, ao terminar um livro. Cem anos de solidão (faço questão de escrever o título com todas as palavras), entretanto, me absorveu e me dissolveu num mundo tão fantástico quanto real e, nessa mescla substancial, me deixou estonteado, guiando-me, num tom quase frio e impessoal, pelas vicissitudes de uma estirpe condenada a cem anos de solidão.

Tão logo já o elevei ao pedestal da minha cabeceira. E quantas vezes não abri a boca, surpreso, para exclamar que porra estava acontecendo ali e por que acontecia. Não vou nem espero divagar sobre o livro, escancarar uma verborragia de reflexões filosóficas, sociológicas, ou, enfim, elaborar um jargão psicanalítico de simbologias para estudar o livro. Mas o livro - ah, sei lá, não quero nem adjetivar nem declarar alguma coisa sobre o livro que é para não vulgarizar a coisa toda. É simples definir algo como bom ou ruim, mas isso é a simplificação simplificada de algo muito mais complexo do que maniqueísmos baratos. Tenho certeza que apreciei o livro, mesmo nos momentos tristes, diante dos impasses e do desfecho de alguns personagens, mas é algo além da definição prática e resumida da razão - e por isso apelo para as sensibilidades.

Não estando a fim de destrinchar sensações e defini-los racionalmente (por causa da hora ou porque não quero), vou deixando por aqui a impressão profunda que me estigmatizou a leitura de Cem mil anos de solidão. Eu na cama, e o livro na cabeceira.

Mas o baque na realidade é constante. Mãos invisíveis apertam o coração e toda a concretude ortogonal parece pesar na alma; a alma adensa-se e deixa prostrado o corpo. Eu li.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Paradise Now, um filme de Hany Abu-Assad.



Minha namorada raramente aceita assistir aos filmes que quero ver e é uma proeza minuciosa persuadi-la, no sentido de que eu não tenha de forçá-la com chantagens ou melodraminhas sentimentais, mas de persuadi-la por sua própria vontade (?). Neste último final de semana, assistimos a uma produção palestina, do diretor Hany Abu-Assad, que trata com maiores delineamentos humanizados (do que trataria uma produção hollywoodiana) os personagens de uma trama que aborda um assunto bastante atual: o terrorismo dos homens-bomba. De uma escala de 0 a 10, por incrível que pareça, a nota recebida por ela foi 8. Por complacência ou não, acho que foi sincera.


Bom, indo ao filme, vou apresentar a sinopse para apoiar nela minha crítica pessoal (ou melhor - para não apresentar qualquer indício de pretensão - minhas impressões).



Amigos de infância, os palestinos Khaled (Ali Suliman) e Said (Kais Nashef) são recrutados para realizar um atentado suicida em Tel Aviv. Depois de passar com suas famílias o que teoricamente seria a última noite de suas vidas, sem poder revelar a sua missão, eles são levados à fronteira. A operação não ocorre como o planejado e eles acabam se separando. Distantes um do outro, com bombas escondidas em seus corpos, Khaled e Said devem enfrentar seus destinos e defender suas convicções.



Numa tentativa de concretizar e humanizar os fantasmas que são os homens-bomba cujas identidades são abafadas pelas vítimas dos seus atentados, Abu-Assad constrói para seus personagens duas personalidades com peculiaridades distintas e autenticamente humanas, sem maniqueísmos, nos quais o passado, a família, a cultura, a razão e o próprio sentimentalismo se interagem, se confrontam e se complementam, conduzindo-os em seus passos. Enquanto o número de vítimas se transforma em dados estatísticos nos jornais e na TV, os terroristas, os homens-bomba nem ao menos são vistos como gente. Abstraem-se. É mais ou menos para preencher o vazio, a invisibilidade de identidade desses homens que parte a estória de Paradise Now.


Khaled e Said, já apresentados na sinopse, são apresentados como figuras até comuns em nossa sociedade, desleixadas e espontâneas, sem grandes pretensões, trabalham numa funilaria e no fim da tarde fumam em seu narguile enquanto, do alto da montanha, observam a cidade. Toda essa despretensão, essa falta de disciplina, demonstra qualquer coisa de afastamento religioso ou político. Numa cena, os protagonistas, em desavença com o chefe, quebram o pára-choque do carro de um cliente, porém, tanto eles quanto o chefe parecem acostumados com as vicissitudes, o que não acarreta em nenhuma decisão drástica – no final, ninguém é despedido.


E quanto mais afastados da religião ou da política, mais próximos estão da nossa cultura – é a impressão que tenho. Essa impressão é reforçada pela estética convencional norte-americana estruturada no filme, de sequências rápidas, diálogos rápidos, de enquadramentos e ângulos tipicamente hollywoodianos. Mas não quero justificar minha impressão me apoiando em técnicas, já que prefiro não criticar as produções norte-americanas, até pelo contrário, algumas até me atraem. Só que é irônico encontrar esse tipo de estrutura num filme que conserva certa aversão aos costumes norte-americanos.


No entanto, a semelhança de produções não se limita à técnica nem às personalidades dos protagonistas, mas se estende à dramatização que por vezes se deixa cair nos deslizes de diálogos manjados concatenados a expressões que deixam transparecer certo melodrama. É aí que perdem destaque para mim, apesar de que eu não teria qualquer outra idéia de como poderiam me persuadir outros personagens num mesmo contexto, numa mesma estória. Essa dramatização típica emana um ar de previsibilidade imprevisível – isso mesmo. É claro que o filme não perderia prestígio, para mim, por isso, já que também respeito esse modo de expressão; e é claro também que o filme não se tornaria ruim por isso, para ninguém, já que a sensação de previsibilidade é tão manjada que já existem diversos artifícios para contorná-la – e é claro – também - que essa sensação de previsibilidade é exposta aqui como simbologia. De modo que agora me sinto obrigado a expressar meu enorme respeito pelo filme, pelos assuntos que aborda, e minha admiração, também, por essa obra – já que eu gostei.


Novamente me escusando de qualquer pretensão, expresso aqui uma análise pessoal, tida pelos meus próprios sentidos, por assim dizer, leigos, desprovido até de conhecimentos técnicos mais profundos. Mas, convenhamos, concordemos – assistamos ao filme. Isso vale como recomendação. E continuemos.


Khaled e Said são convocados para realizar um plano que vinha sendo “estudado há 2 anos e chegou a hora de pô-lo em prática”. É aí que começamos a conhecer as relações político-religiosas dos protagonistas e suas convicções à cerca do assunto. E é nos próximos momentos que se configurará uma complexa rede de minuciosidades que nos apresentará ora sutilmente, ora expressamente as convicções do próprio autor. Jamal, amigo de Said há algum tempo, é quem dá a ele a notícia de que fora convocado. No primeiro momento, senti algo mais profundo nas intenções de Jamal, no entanto, no decorrer das sequências, ele se mostra debilitado em suas ideologias, quase vazio, sem argumentos, e que tenta delicadamente convencer Said, ou melhor, mantê-lo convicto de sua decisão e de Alá, também.


O momento mais constrangedor, para mim, que revela toda uma falta de pretensão, organização, ou a falta de uma sólida base racional, e que revela também, além do desinteresse, um certo desrespeito com os escolhidos para a “missão”, é quando Khaled, filmado pelos correligionários em seu discurso de “despedida”, no qual explicita a razão de sua conduta, é avisado que a câmera não estava gravando por alguma falha. Exatamente nesse ponto, pensei comigo: não há mais convicção, não há entusiasmo, eles não sabem nem ao menos porque agem assim. É a prova cabal de que o conflito e toda a causa foram banalizados não só para a sociedade ocidental, ou ocidentalizada, mas até mesmo para eles, oprimidos e reacionários. Após todo o discurso que Khaled lê num papel, o aviso, dado inclusive descompromissadamente pelo rapaz que filmava, revela esse desacordo com ideologias tão fortes e tão perigosas.


Afinal, os protagonistas passam pelas vicissitudes da trama e não há nada demais que eu queira comentar sobre isso. Aliás, tenho sim. Diante da sagrada missão, escondido por um espesso manto de medo (do divino e do humano), Said tenta disfarçar a incerteza da existência do Paraíso e manter sólidas suas convicções. Desconfia, mas não quer desconfiar. E se deixa ir na estória como se usasse a luta contra o medo como desculpa para suas incertezas. É como lutar contra a negação do divino. Porém, isso não se mostra tão visível, mas aparente, de forma cautelosa, escamoteado nas entrelinhas das perguntas e das afirmações.


Mas há algo realmente interessante que realça bem a contradição entre os dois povos que ocupam a região. Enquanto a cidade dos protagonistas, em alguma parte da região da Cisjordânia, apresenta-se com todas as estruturas de uma cidade de subúrbio, marginal, quase uma favela do Rio de Janeiro, de ruas de terra, sulcadas, esburacadas, com casas decrépitas, dispostas em morros e mais morros, Tel Aviv, cidade israelense, tem seus prédios suntuosos, suas praias bordadas por orlas matematicamente estruturadas, onde passeiam a gente, os turistas, num ar de contentamento e indiferença. Nessa parte, vê-se também a diferença cultural, a divergência no modo de vestir, inclusive com um plano que enquadra uma garota de biquíni e toda a visibilidade do seu corpo. Essa cena se passa já no final, quando, de alguma maneira, a trama consolida as convicções de um e dissolve as de outro, e nos permite observar a ação de suas decisões.


Recomendo, sim, esse filme, até para que seja possível que se admita uma outra visão sobre o assunto, que ao menos a considere para debater com mais precisão esse tema tão unânime na opinião pública. E já que não estamos discutindo originalidade artística, nem construção estética, desconsiderem minhas considerações sobre a técnica e suas influências no total cinematográfico. E eu sei que estou errado quanto a isso também.


sábado, 24 de outubro de 2009

O Amplificador Desamplificado

Há algo de melancólico no tom em que canta suas músicas alegres. E em toda sua representação de trajes típicos de sua região. Nas suas músicas entrecortadas, entre chiados e oscilações de intensidade, o amplificador cospe o ruído grave da sua voz rachada e extenuada. O homem tem um violão reluzente nos braços e toca suavemente suas cordas tilintantes, enquanto canta ao microfone. Uma batida de percussão sai pré-gravada de um instrumento e segue as notas de seu violão. E tudo é um som só num único amplificador, desamplificado.

Abaixo, ao seu lado, uma caixa de papelão expõe à venda seus CDs quase improvisados, resultado da doação de alguma gravadora ou de algum projeto de incentivo à cultura do Estado. Do outro lado, um acordeão também reluzente, coberto em parte por uma capa de couro. O homem e sua cantoria parecem adaptados ao local, àquelas circunstâncias de alegrias, mas a multidão ao redor mal presta atenção na sua música. Uns passam, outros repassam, lanchando coxinhas e pastéis. Visam às barraquinhas feitas a ferro, madeira e lona, e o que elas oferecem - frituras e gorduras. As várias barraquinhas em fileiras vendem seus peixes ao ar quente que sobe do óleo no fogo. Uns pirralhos brincam enquanto rodeiam ávidos como urubus as pessoas com seus lanches. E então atacam, pedem um pedacinho, um golinho do refrigerante, pedem que deixem um restinho disso ou daquilo e pedem um trocado e vão embora ainda insatisfeitos. Alguns turistas observam as lojas de artesanato - as peças de barro, as esculturas em moldes e traços tipicamente regionais: uma visão simbólica de uma gente.

E o homem a cantar e a bailar, em passos mínimos e repetitivos.

Os sinos batem na igreja da praça, os noivos vão entrar; trajes a rigor, os que ali estão, separados por grades, contrastam sua exuberância com o ambiente simplista, tolerante, dos transeuntes na feirinha. Os vendedores sentam-se em seus banquinhos enquanto a freguesia não chega; descansam e uns conversam com outros. Os murmúrios e o tilintar ressonante dos sinos, o rosnar metálico dos carros na avenida, tudo supera a música ruidosa que sai do amplificador do homem, mas ele não perde o fio da meada, não perde a voz já desgastada, não perde o ritmo nem a letra, e perpetua em sua canção imortalizada. O homem conserva a paciência de um surdo que canta para si. Da face cintila o suor, e pingos caem titubeando entre as rachaduras e as rugas de um rosto desgastado pelo tempo e pela vida. E o homem, obstinado, a cantar. A noite sem estrelas e sem nuvens resplandece em sua lucidez vívida e traz da praia a leve e constante maresia que, vez ou outra, intensifica e logo se acalma, sempre constante. As luzes dos prédios ao redor vivificam a noite, e toda essa claridade não é mais uma antítese da escuridão no céu, mas um contraste que se aplica como adorno, como estrelas artificiais que o céu não trouxe consigo esta noite. E todo o ar parece límpido e conserva em si o contentamento e a serenidade das pessoas na praça. Toda a paisagem é um reflexo dessa conformidade rotineira.

No asfalto, porém, as rachaduras escondem a sujeira; a grama pisoteada e desbotada guarda o lixo descartável já consumido. Os postes se espalham e espalham iluminação. Gente sentada na bancada da praça consome, ri, conversa. E o homem, com seu violão, canta. E todos guardam sua indiferença ao homem do violão. E a música se perde entre o alarido, entre risos e gargalhadas, entre o ressoar dos sinos e o estrepitar dos carros. A missa de celebração começa, todos silenciam, mas lá fora, na praça, tudo funciona, tudo vive. E o homem canta.