terça-feira, 10 de novembro de 2009

Quando você come moralismo e caga hipocrisia (Uma crítica a você, cidadão)

Critiquemos a política.
Critiquemos o desmatamento.
Critiquemos as ruas e a segurança,
Os assassinos e a polícia.
Critiquemos a desigualdade e a discriminação e
critiquemos as políticas afirmativas.
Critiquemos o terrorismo e
critiquemos, também, os Estados Unidos.
Critiquemos a sujeira, o lixo, a lama,
a poluição.

Critiquemos você, cidadão.

Critiquemos o país, o mundo, a sociedade inteira
Por viver de hipocrisia à sua maneira.
Critiquemos a mídia, a televisão, as imagens,
a violência, a vulgarização.
Critiquemos a pornografia, as mulheres, a prostituição.

Critiquemos você, cidadão.

Critiquemos a tecnologia e tudo o que ela propicia.
Critiquemos o avanço, a maquinização das coisas.
Critiquemos a concretude ortogonal que se ergue pela cidade
Como monstros implacáveis.
E, vá lá, critiquemos a ciência e a religião.

Critiquemos você, cidadão.

Critiquemos você aí sentado,
De cara pra TV ou pro computador,
Não sem certa empáfia,
Criticando a política, a mídia, a pornografia,
a segurança, a poluição, o desmatamento, a sujeira,
o país, o mundo, a sociedade inteira
por viver de hipocrisia à sua maneira.
Critiquemos, ao mesmo tempo, Geisy Arruda e a Uniban,
os alunos e o Taleban.

"Poesia rima com hipocrisia", Laurinha.

domingo, 8 de novembro de 2009

O baque na realidade

Não foi com lágrimas nos olhos e a vista difusa que terminei Cem anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, pois em mil outras páginas desse livro eu pude - e motivo não faltou - chorar minhas emoções e não o fiz. No entanto, foi com o corpo trêmulo e o coração apertado que fechei esse livro e senti, então, o baque da realidade caindo em peso, como tantas vezes, ou sempre aconteceu, ao terminar um livro. Cem anos de solidão (faço questão de escrever o título com todas as palavras), entretanto, me absorveu e me dissolveu num mundo tão fantástico quanto real e, nessa mescla substancial, me deixou estonteado, guiando-me, num tom quase frio e impessoal, pelas vicissitudes de uma estirpe condenada a cem anos de solidão.

Tão logo já o elevei ao pedestal da minha cabeceira. E quantas vezes não abri a boca, surpreso, para exclamar que porra estava acontecendo ali e por que acontecia. Não vou nem espero divagar sobre o livro, escancarar uma verborragia de reflexões filosóficas, sociológicas, ou, enfim, elaborar um jargão psicanalítico de simbologias para estudar o livro. Mas o livro - ah, sei lá, não quero nem adjetivar nem declarar alguma coisa sobre o livro que é para não vulgarizar a coisa toda. É simples definir algo como bom ou ruim, mas isso é a simplificação simplificada de algo muito mais complexo do que maniqueísmos baratos. Tenho certeza que apreciei o livro, mesmo nos momentos tristes, diante dos impasses e do desfecho de alguns personagens, mas é algo além da definição prática e resumida da razão - e por isso apelo para as sensibilidades.

Não estando a fim de destrinchar sensações e defini-los racionalmente (por causa da hora ou porque não quero), vou deixando por aqui a impressão profunda que me estigmatizou a leitura de Cem mil anos de solidão. Eu na cama, e o livro na cabeceira.

Mas o baque na realidade é constante. Mãos invisíveis apertam o coração e toda a concretude ortogonal parece pesar na alma; a alma adensa-se e deixa prostrado o corpo. Eu li.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Paradise Now, um filme de Hany Abu-Assad.



Minha namorada raramente aceita assistir aos filmes que quero ver e é uma proeza minuciosa persuadi-la, no sentido de que eu não tenha de forçá-la com chantagens ou melodraminhas sentimentais, mas de persuadi-la por sua própria vontade (?). Neste último final de semana, assistimos a uma produção palestina, do diretor Hany Abu-Assad, que trata com maiores delineamentos humanizados (do que trataria uma produção hollywoodiana) os personagens de uma trama que aborda um assunto bastante atual: o terrorismo dos homens-bomba. De uma escala de 0 a 10, por incrível que pareça, a nota recebida por ela foi 8. Por complacência ou não, acho que foi sincera.


Bom, indo ao filme, vou apresentar a sinopse para apoiar nela minha crítica pessoal (ou melhor - para não apresentar qualquer indício de pretensão - minhas impressões).



Amigos de infância, os palestinos Khaled (Ali Suliman) e Said (Kais Nashef) são recrutados para realizar um atentado suicida em Tel Aviv. Depois de passar com suas famílias o que teoricamente seria a última noite de suas vidas, sem poder revelar a sua missão, eles são levados à fronteira. A operação não ocorre como o planejado e eles acabam se separando. Distantes um do outro, com bombas escondidas em seus corpos, Khaled e Said devem enfrentar seus destinos e defender suas convicções.



Numa tentativa de concretizar e humanizar os fantasmas que são os homens-bomba cujas identidades são abafadas pelas vítimas dos seus atentados, Abu-Assad constrói para seus personagens duas personalidades com peculiaridades distintas e autenticamente humanas, sem maniqueísmos, nos quais o passado, a família, a cultura, a razão e o próprio sentimentalismo se interagem, se confrontam e se complementam, conduzindo-os em seus passos. Enquanto o número de vítimas se transforma em dados estatísticos nos jornais e na TV, os terroristas, os homens-bomba nem ao menos são vistos como gente. Abstraem-se. É mais ou menos para preencher o vazio, a invisibilidade de identidade desses homens que parte a estória de Paradise Now.


Khaled e Said, já apresentados na sinopse, são apresentados como figuras até comuns em nossa sociedade, desleixadas e espontâneas, sem grandes pretensões, trabalham numa funilaria e no fim da tarde fumam em seu narguile enquanto, do alto da montanha, observam a cidade. Toda essa despretensão, essa falta de disciplina, demonstra qualquer coisa de afastamento religioso ou político. Numa cena, os protagonistas, em desavença com o chefe, quebram o pára-choque do carro de um cliente, porém, tanto eles quanto o chefe parecem acostumados com as vicissitudes, o que não acarreta em nenhuma decisão drástica – no final, ninguém é despedido.


E quanto mais afastados da religião ou da política, mais próximos estão da nossa cultura – é a impressão que tenho. Essa impressão é reforçada pela estética convencional norte-americana estruturada no filme, de sequências rápidas, diálogos rápidos, de enquadramentos e ângulos tipicamente hollywoodianos. Mas não quero justificar minha impressão me apoiando em técnicas, já que prefiro não criticar as produções norte-americanas, até pelo contrário, algumas até me atraem. Só que é irônico encontrar esse tipo de estrutura num filme que conserva certa aversão aos costumes norte-americanos.


No entanto, a semelhança de produções não se limita à técnica nem às personalidades dos protagonistas, mas se estende à dramatização que por vezes se deixa cair nos deslizes de diálogos manjados concatenados a expressões que deixam transparecer certo melodrama. É aí que perdem destaque para mim, apesar de que eu não teria qualquer outra idéia de como poderiam me persuadir outros personagens num mesmo contexto, numa mesma estória. Essa dramatização típica emana um ar de previsibilidade imprevisível – isso mesmo. É claro que o filme não perderia prestígio, para mim, por isso, já que também respeito esse modo de expressão; e é claro também que o filme não se tornaria ruim por isso, para ninguém, já que a sensação de previsibilidade é tão manjada que já existem diversos artifícios para contorná-la – e é claro – também - que essa sensação de previsibilidade é exposta aqui como simbologia. De modo que agora me sinto obrigado a expressar meu enorme respeito pelo filme, pelos assuntos que aborda, e minha admiração, também, por essa obra – já que eu gostei.


Novamente me escusando de qualquer pretensão, expresso aqui uma análise pessoal, tida pelos meus próprios sentidos, por assim dizer, leigos, desprovido até de conhecimentos técnicos mais profundos. Mas, convenhamos, concordemos – assistamos ao filme. Isso vale como recomendação. E continuemos.


Khaled e Said são convocados para realizar um plano que vinha sendo “estudado há 2 anos e chegou a hora de pô-lo em prática”. É aí que começamos a conhecer as relações político-religiosas dos protagonistas e suas convicções à cerca do assunto. E é nos próximos momentos que se configurará uma complexa rede de minuciosidades que nos apresentará ora sutilmente, ora expressamente as convicções do próprio autor. Jamal, amigo de Said há algum tempo, é quem dá a ele a notícia de que fora convocado. No primeiro momento, senti algo mais profundo nas intenções de Jamal, no entanto, no decorrer das sequências, ele se mostra debilitado em suas ideologias, quase vazio, sem argumentos, e que tenta delicadamente convencer Said, ou melhor, mantê-lo convicto de sua decisão e de Alá, também.


O momento mais constrangedor, para mim, que revela toda uma falta de pretensão, organização, ou a falta de uma sólida base racional, e que revela também, além do desinteresse, um certo desrespeito com os escolhidos para a “missão”, é quando Khaled, filmado pelos correligionários em seu discurso de “despedida”, no qual explicita a razão de sua conduta, é avisado que a câmera não estava gravando por alguma falha. Exatamente nesse ponto, pensei comigo: não há mais convicção, não há entusiasmo, eles não sabem nem ao menos porque agem assim. É a prova cabal de que o conflito e toda a causa foram banalizados não só para a sociedade ocidental, ou ocidentalizada, mas até mesmo para eles, oprimidos e reacionários. Após todo o discurso que Khaled lê num papel, o aviso, dado inclusive descompromissadamente pelo rapaz que filmava, revela esse desacordo com ideologias tão fortes e tão perigosas.


Afinal, os protagonistas passam pelas vicissitudes da trama e não há nada demais que eu queira comentar sobre isso. Aliás, tenho sim. Diante da sagrada missão, escondido por um espesso manto de medo (do divino e do humano), Said tenta disfarçar a incerteza da existência do Paraíso e manter sólidas suas convicções. Desconfia, mas não quer desconfiar. E se deixa ir na estória como se usasse a luta contra o medo como desculpa para suas incertezas. É como lutar contra a negação do divino. Porém, isso não se mostra tão visível, mas aparente, de forma cautelosa, escamoteado nas entrelinhas das perguntas e das afirmações.


Mas há algo realmente interessante que realça bem a contradição entre os dois povos que ocupam a região. Enquanto a cidade dos protagonistas, em alguma parte da região da Cisjordânia, apresenta-se com todas as estruturas de uma cidade de subúrbio, marginal, quase uma favela do Rio de Janeiro, de ruas de terra, sulcadas, esburacadas, com casas decrépitas, dispostas em morros e mais morros, Tel Aviv, cidade israelense, tem seus prédios suntuosos, suas praias bordadas por orlas matematicamente estruturadas, onde passeiam a gente, os turistas, num ar de contentamento e indiferença. Nessa parte, vê-se também a diferença cultural, a divergência no modo de vestir, inclusive com um plano que enquadra uma garota de biquíni e toda a visibilidade do seu corpo. Essa cena se passa já no final, quando, de alguma maneira, a trama consolida as convicções de um e dissolve as de outro, e nos permite observar a ação de suas decisões.


Recomendo, sim, esse filme, até para que seja possível que se admita uma outra visão sobre o assunto, que ao menos a considere para debater com mais precisão esse tema tão unânime na opinião pública. E já que não estamos discutindo originalidade artística, nem construção estética, desconsiderem minhas considerações sobre a técnica e suas influências no total cinematográfico. E eu sei que estou errado quanto a isso também.