sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Amor, Sexo & Stravinsky.

Não vou resistir, pensou. É mesmo um redemoinho, estamos no mesmo barco. Não resistiu. A última palavra de adeus fora dada, cumpriram com a transação de suas vidas, na qual um pagava com o corpo e com as carícias apaixonadas. Comunhão espiritual, carnal, compactuavam-se. Agora seus espíritos imiscuídos irrompiam-se, rescindiam-se no último golpe dilacerante: a negação do marasmo idílico – deram o que tinham para dar. Ela quis assim, ele entendia, mas não aceitava. Necessidade de novas faces, de novos momentos – não que não tivesse achado o amor, não que não o tivesse amado. Era uma Don Juan desejosa, que compreendia o amor e queria compartilhá-lo, não atestar sua intensidade, não para qualificá-lo, mas para disseminá-lo. Multiplicá-lo. Saciedade? Se o abandonou, não foi por o não desejar, ou por o não amar, mas por desejar outros, desejar amar outros. Talvez fosse adepta e sustentasse o discurso do hedonismo. A verdade é que se sentia livre para amar – e amar em si era um ato de liberdade, num mundo coercivo, impregnado da sujeira dos entulhos caóticos dos mecanismos sociais, disputado pelo predatismo sistemático do capitalismo por excelência – e não fazia do amor algo a se expropriar: a reciprocidade, pois, não cria exigências.

Mudava de ares menos para renovar as energias do que para conhecer o novo; não procurava, porque não tinha esperança de achar, mas tinha necessidade de mostrar (ao mesmo tempo que se satisfazia) todo seu desejo, toda sua ternura, tudo o que sabia sobre amar. Pois, qualquer que seja o significado que o conceitue, o amor não é muito mais do que desejo e ternura. E essa experiência ela teve aos montes, todos ou a maioria muito distintas uma das outras, pois não era ela que fazia do ser amado um ser especial, um ser único, mas ele próprio. Ela saboreava o que ele tinha para oferecer, deixava-se conduzir contanto que as mãos do outro delineassem sabiamente os contornos do relacionamento. Ela tinha suas manhas, assim como tinha seus melindres. Peculiaridades.

Ela fechou a porta assim que ele entrou no elevador. Trancou. Nenhuma lágrima? Uma talvez. Sua excitação havia esmorecido depois da discussão que tivera. Mas tudo o que ela precisava era de Stravinsky, de sua agitação, de sua veemência, para revolver os sentimentos condensados na alma, para dissipá-los, fazê-los em pedaços com os movimentos dilacerantes, discordantes e irruptivos dos seus instrumentos. Pôs a Consagração da Primavera. Estendeu-se na cama e tentou relaxar. Gostava de Stravinsky porque sua música era inconciliável, discordante, dissonante, como sua vida; Stravinsky oscilava.

A música, tudo ainda era inspiração, aspiração. As notas se compactuavam, lenientes, e cessavam, como quem procura palavras para expressar alguma coisa e hesita em quais escolher. O tom parecia se preciptar, a melodia era derrisória, mas já começava a tender para um suspense grave. Ah, Stravinsky, você era esperto. Finalmente as palavras, as notas, pareciam se articular, pareciam se conciliar, consignadas – pareciam concordar em alguma coisa e queriam dizê-la. Mas, na voz de Stravinsky, qualquer acordo é quase intratável, porque sabem que Stravinsky é imprevisível, e por isso o acordo, qualquer que fosse, seria escorregadio, instável e a harmonia poderia se desfazer tão prontamente ao desejo de Stravinsky.

Ela se compactuava à música, fundia-se à música; com a voz dos instrumentos, dava vazão aos seus sentimentos desconcertantes, como se cada movimento interpretasse ou descrevesse uma parte da sua vida, ou melhor, do seu relacionamento amoroso, de como começou, de como se estruturou num equilíbrio terno e espontâneo e de como tudo se desfez, se desmoronou ao sopro avassalador das vontades, dos desejos que a instablizavam. Não os desejos que a fazia entregar-se a ele, mas os desejos de se entregar ao mundo; não fisicamente, apenas, não sexualmente, apenas.

A música fluía, paralela às idéias e aos pensamentos. Confluíam-se. Era sua história que era interpretada por uma peça musical. No entanto, o enredo não era nenhuma surpresa – era sua própria história contada. E esperava o momento em que tudo irromperia, o momento dilacerante em que as notas não mais se compactuariam, mas se disseminariam como balas metralhadas a esmo, que rasgariam sua alma; esperava o soco de Stravinsky, as mãos pesadas que revolveriam sua alma condensada. Tinha de esquecer tudo. Amanhã, acordaria e teria sua pele trocada. Sua alma estaria límpida, novamente. Stravinsky seria então trilha sonora para sua nova aventura amorosa. Ou para exaltar a monotonia de um dia rotineiro.

A peça havia-se enviesado pelos movimentos instáveis – ela pôde finalmente identificar os últimos momentos que vivenciara. As notas oscilavam, agora, entre as intrigas do dia-a-dia e a concupiscência apaixonada da noite. Tudo convergia. O fim estava próximo. Ela não se surpreenderia com o final – vivenciara isso já muitas mil vezes. Stravinsky era mesmo inconciliável. Na obra de Stravinsky, não havia harmonia para trilhar uma vida – exceto uma vida desconcertada como a dela.

De repente, a campainha soou. Ela sabia quem era. Hesitou em se levantar, mas resolveu-se ir. Era ele. Stravinsky explodia como bomba atômica no quarto dela. E ele esperava em frente à porta – sabia que ela abriria. Não vou resistir, pensou. É mesmo um redemoinho irreversível, mas se pode permanecer nele tempo bastante. Ela abriu. Olharam-se, seus olhos se corresponderam, consignaram-se. Foram para cama, ao som dilacerante de Stravinsky. Transaram pela última vez. Sem palavras, despediram-se como se cumprimentaram – com os olhos. Stravinsky já pretendia descansar.

Silêncio. Agora tinha a promessa do amor entranhada na carne. Sentia-se revigorada, mas com a mesma pele que recendia o cheiro dele. Amanhã esse cheiro seria transferido para a cama, que o absorveria e o diluiria. Ele nunca mais voltaria – seria melhor assim.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Conversa na parada de ônibus

- Olhe, irmão, eu dou graças a Deus por ser espírita. Graças a Deus! Você veja, ela vai pra essa igreja evangélica a pedido de amiga, senta lá e fica ouvindo o que o pastor diz - vê se isso pode? Ela é espírita, não é evangélica! Eu conhecia uma família que me chamava sempre pra visitar a igreja deles, católica, mas eu não ia. Não ia, não, sabe por quê, irmão? Porque nada que de lá vem me interessa, nada daqueles sermões, das interpretações deles, da palavra, nada disso me interessa porque eu sou espírita, né, irmão? Eu vou pra lá pra fazer o quê? Eles diziam: "não, que o padre é muito bom e fala coisas bonitas!", mas, sim, nada disso me interessa porque eu não acredito nisso. Eu sou espírita, irmão, não sou católica! Não tô certa, irmão?

- Tá sim.

- E outra, pode ser a palavra bonita que for, mas eu não acredito em nada que vem deles. Eu sou espírita, irmão.

- Hum...

- "Mas vamos lá visitar, você escuta que lindo é o sermão desse tal padre", mas eu não vou, irmão. Não vou. Não adianta. Não vou me corromper. Sou espírita!

- É, é mesmo.

- Eu não vou pra lá pra ficar vendo o padre rezar uma missa e os fiéis acompanhar e eu lá sem em nada acreditar.

- É.

- Não é?

- É.

- Veja, irmão, eu já fui católica, até meus 12 anos de idade. Depois disso, irmão, virei espíritagraças-a-Deus!

- É mesmo?

- Eu frequentava a igreja, né, da minha família. E eu morria de medo, né, irmão, por causa dos ensinamentos. Eu tinha medo porque eu não pensava que eu não podia errar, porque se não eu ia pro inferno, e eu morria de medo, irmão. Não tem isso, né? se você errar, pecar, vai pro inferno; se você fizer o bem, vai pro céu. Pois irmão, eu morria de medo de errar. Quando errava ficava assustada.

- É mesmo?

- Éé. Aí foi quando uma amiga me levou pra um centro espírita. Aí eu aprendi que não existe inferno nem Paraíso. Que o "inferno e o Paraíso estão dentro da gente e que é o nosso estado de espírito". Mas não tem nada de sofrer pra sempre. Isso que me assustava. Aí eu comecei a frequentar o centro e desde então me considero espírita. Há 40 anos, irmão! 40 anos!

- Nossa! É mesmo? Achei que a irmã era novinha, tinha seus 20 anos!

(Risos)

- Mas eu dou graças a Deus, irmão, por ser espírita. Graças a Deus. Hoje em dia ninguém mais me convence, ninguém me converte mais! Já me levaram pra igreja evangélica, já tentaram de tudo, mas ninguém me tira do espiritismo, irmão!

- Hum...

- E eu não acredito em nada que me digam, não acredito em ninguém que não carregue os ensinamentos espíritas, sabe, irmão?

- Hum...

- Eu não vou pra outra igreja, irmão, pra não me contaminar. Não preciso, irmão. Eu sou espírita. Né mesmo?

- É.

- Olha, irmão, é o seu ônibus!

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O Otimismo em Gaspar Noé


Todo o pessimismo das tramas fílmicas de Gaspar Noé – compostas por personagens ordinários que sofrem as mais funestas desventuras e têm de superá-las de alguma forma, por entre os becos dos subúrbios da França, no mais ínfimo dos limbos – não consegue dissimular a bondade e a clemência arraigadas no seu coração. Noé não me engana. Toda a violência explícita e gratuita dos seus filmes parece não passar de componente que serve para um discurso de auto-superação, antitético, do qual os próprios personagens dão exemplos de vida. Piada? Não.



Sozinho contra todos é o que mais evidencia esse discurso de superação. Depois de toda aquela vertigem alucinada, pela qual o Açougueiro, tão desvairado quanto aterrorizado, declina num espiral destrutivo, atulhado de pensamentos implosivos e reflexões existenciais, depois de executar a filha e, finalmente, se matar, rebenta o clarão para anunciar aos espectadores a segunda chance dos personagens, a reviravolta que anula todos os planos e expectativas, e que vem, principalmente, para desfechar, de forma emocionantemente esperançosa e – arrisco dizer - hollywoodiana, um final feliz. Em Carne, que não é um longa mas um média metragem, também não é difícil perceber resquícios de esperança no seu final, que não se pode chamar de desfecho. E já que disse isso, que a carapuça sirva também para Sozinho contra todos, já que a vida – ora – a vida continua. Em Carne, o mesmo personagem de Sozinho... (magistralmente interpretado por Philippe Nahon), o Açougueiro, tendo cumprido a pena na prisão e sendo liberto, recomeça sua vida com a dona de um bar, enquanto dirige um carro ao som do rádio.



Irreversível, seu segundo longa metragem, tem uma estrutura bem distinta, não só entre seus filmes, mas entre películas de outros diretores, e nos confunde quanto a o que é o final e onde está o final. A narrativa do filme, ao contrário do que o título sugere, é genuinamente revertida, tendo seu começo no final e virse-versa. Para se ter uma idéia, o filme começa com a apresentação dos créditos finais e, na sequência, o que seria o final do filme – é ao menos o final do enredo, da estória. As cenas (tanto por causa da brutalidade psicológica e a violenta interação e comunicação humana) são brutalmente bem produzidas em planos-sequências, com o acompanhamento de uma alucinada câmera que flui rodopiante, e atuações excepcionais, como as de Vincent Cassel, Albert Dupontel e, é claro, Monica Bellucci. No entanto, a reversão cronológica da narrativa não faz convergir toda a nossa tensão e curiosidade a um só ponto; pelo contrário, ao descobrirmos, num filme que se passa de frente para trás, o próprio final de sua trama, vemo-nos disposto apenas a aguardar, não menos curioso, a causa de seu desfecho.


Afinal, depois das duas cenas mais brutais, depois de todo o frenesi da festa em que os personagens se encontram antes de todas as desavenças e desventuras, o que seria o começo do filme acaba sendo o seu desfecho. De um quarto tranqüilo e a revelação de uma gravidez, cheia de exultação partilhada por um casal (Marcus – Cassel e Alex – Bellucci), para um brando, tênue e resplandecente campo verde, onde Alex lê, na quietude proporcionada pela paisagem, e onde crianças brincam saltitantes e rodopiam com a câmera. É nesse sentido que eu alego e defendo a benignidade e clemência de Noé e seu otimismo escamoteado pela violência física e psicológica de seus filmes.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Eu, adolescente e o Cinema

Fui ao cinema, ontem, a um típico multiplex no meio do shopping center, onde se reúnem caoticamente grupinhos de adolescentes da nova moda. Fui ver Atividade Paranormal, filme cujo gênero (terror) não me apetece muito. No entanto, num espasmo súbito de coragem, pus-me em frente ao espelho, olhei nos meus olhos e disse: Renan, você irá. E fui, mais pela minha namorada do que por qualquer outra coisa.


Não acho que preciso narrar todas as vicissitudes, que ocorreram até certo ponto de forma amistosa e incólume; vou citá-las algumas, ao menos. Primeiro, tive de enfrentar uma fila caoticamente titânica para adquirir os ingressos. Os corredores se congestionavam quilometricamente, e quanto mais gente chegava, mais o lugar se obstruía. Esperei quase uma hora, sozinho, desolado, abandonado (enquanto Laura maquilava milimetricamente cada detalhe de seu rostinho lindinho, em frente ao espelho, na casa da sua prima). Inevitável e incrivelmente, me amparei nas telas hipnóticas do meu celular, jogando um joguinho tremendamente legal, enquanto a fila caminhava a passos raros. Afinal, chegou ela e a prima, deram um oi (tremendamente rápido) e foram almoçar (eram umas 17h30).


Bom, até aí, tudo bem, tudo tranqüilo, até encontrei um amigo porra-louca dos tempos que eu ainda estudava com mamãe na mesa de jantar, pra prova do próximo dia. Dos tempos, inclusive, que ele dividia revistas pornográficas com os amiguinhos (eu estava lá), e passávamos a tarde navegando pelas curvas vertiginosas e pela cútis resplandecente das mulheres nas páginas das revistas e na telinha do computador – tudo isso enquanto nossos pais se orgulhavam perante os amigos contando a eles que seus nobilíssimos, respeitáveis e dedicados filhos estavam reunidos, quebrando a cabeça num trabalho escolar. Verdade, mas não passava de uma verdade teórica, hipotética. Eu fui uma criança normal, nesse quesito, no que se refere à nossa sociedade masculinizada, construída à base do discurso imagético da pornografia.


Depois...


Tudo começou dentro da salinha (saleta) do cinema, que estava abarrotada (sem exageros, pois tinha gente sentada nas escadinhas, e eu estava entre essa gente). Possivelmente, venderam mais ingressos do que a sala podia comportar. Vários grupinhos tinham se amontoado em uma só fila de poltronas, e todos os jovenzinhos se sentiam acomodados e protegidos e, principalmente, deslocados. Todo aquele conforto e segurança propiciavam empolgação transbordante para horas de sarro e algazarra estridente típicos de adolescentes espalhafatosos da nova moda. Era de se esperar. Comentários de todo tipo ressoavam por toda sala; primeiro, eram dirigidos a eles mesmos, como se todo mundo ali se importasse com suas particularidades e girasse em torno deles. Depois, o sarro se dirigiu para todo mundo, grupinhos se interconectavam, discutiam e se xingavam no escurinho do cinema (o que garantia a segurança do anonimato). Tivemos de suportar suas extravagâncias. Aquilo, absolutamente, sem dúvida alguma, não era um cinema. Era um antro de cachorrinhos mimados por piruas mesquinhas e que latiam um para o outro sem poder se atacar.


O filme, enquadrando-se no gênero terror, obviamente tentava satisfazer (que modo mais estranho de garantir diversão) o público com suas cenas tipicamente aterrorizantes. E em cada suspense, em cada cena angustiante e tenebrosa, as garotinhas davam gritinhos estridentes que se confundiam com os gritos (se é que havia algum) da personagem no filme. Foi algo realmente interessante, acho até que boa parte dos espectadores se assustou mais com os gritos deles mesmos do que com as cenas do filme. E que filme – francamente, sinceramente – merda. É verdade que eu achei criativo, mas – vá lá – já temos a Bruxa de Blair. O filme se encaixa forçosamente no gênero terror justamente por causa do enredo e suas vicissitudes manjadas de qualquer filme de terror: o cara sarcástico e incrédulo, a garota que os espíritos perseguem etc etc. Ao menos a protagonista não é gostosa (haha). Isso, sim, foi original, apesar de que, nesse caso, as gostosas são imprescindíveis.


Todos aqueles adolescentes imbecilóides, superficiais, superfaciais, lançando risos insinceros, espalhafatosos, vivendo num mundinho cheio de verdades inconcretas – isso realmente não me interessava, mas eles eram chatos. Revestem-se de uma carapuça falseada, reproduzem idéias e personalidades e têm a coragem de insinuar toda essa superficialidade vazia para – agora vou apelar para o discurso manjado do pacato cidadão – para trabalhadores que só querem, no fim do dia, algumas poucas horas de diversão e relaxamento. Acho que todos nós temos a mesma sensação ao encarar uma dessas figurinhas repetidas que são esses adolescentes midiáticos (porque se vestem e se revestem de mídia, de propaganda), puras reproduções mecânicas de um sistema falho e inorgânico. São carcaças vazias, puras carcaças. Lacunas impreenchíveis. E, principalmente, possuem uma mentalidade socialmente apática. E, adivinha só, isso não é individualismo. Por fim, levando em conta os tipos ideais weberianos, caricaturalmente falando, são personas superficiais, carcaças vazias. Não quero, no entanto, que minha crítica se estenda a uma reflexão filosófica existencialista. Paro aqui, enquanto o texto ainda conserva o sabor de crônica.


Que o Sr. Anderson (dos filmes de terror), não leia esse texto.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Nós, cristãos e crianças.

Parte 1: O cristão decente
Pernas cruzadas, silêncio respeitoso, gestos curtos e prudentes. Algumas palavras trocadas, discretamente, despretensiosas. Pergunta, resposta, silêncio. Pergunta, resposta, silêncio. A TV sintonizada detém a atenção. Faustão tenta ser engraçado e faz comentários estúpidos. O programa decorre aos trôpegos indiscretos e constrangedores da arrogância discreta de Faustão, e se arrasta, então, tentando se apoiar nos truques midiáticos e nos comerciais do plin-plin. A telinha absorve a mente. Alguém reclama do calor – realmente, a sala está abafada. Alguém abre a janela e uma brisa suave penetra desesperada e faz redemoinhos por entre os cabelos, e um alívio percorre o corpo de todos. A noite está resplandecente, e uma lua pálida projeta-se pela janela. “Nossa, estava muito abafado”, comentam. “São dias quentes”, outro comenta e todos concordam. “É o aquecimento global”, arriscam. E de novo o silêncio paira sobre a sala, embora haja alguma tentativa de confabulação. Alguém pergunta se querem um copo com água. Alguns aceitam, outros simplesmente agradecem. Há uma tensão coerciva no ar – todos têm medo de cometer qualquer imprudência.
“Hoje em dia, tudo está muito mudado. Não há mais respeito – você, que é do interior, você percebe?”
“É. É mesmo. Você veja, quando você era criança, você não pedia benção a seus pais? Chegava de um lugar e: ‘benção, meu pai ou minha mãe’ – não era assim? Hoje em dia não tem mais respeito. Tratam como se a gente fosse qualquer um, ‘e aí, bicho’, é assim; cheio de gírias”.
“Concordo. Eu lembro que meus pais exigiam que pedisse a benção. E, na frente das visitas, não se podia falar! Como havia mais respeito naquela época, mais disciplina. Você vê, é por isso que hoje há tanta desgraça no mundo, filho matando pai etc etc. Se ninguém respeita os pais, o que dizer da palavra de Deus, que está acima de tudo? As coisas mudaram bastante”.
Sim, mudaram na sua época, na sua geração, e mudarão na minha; nessas horas, ninguém critica a própria geração, sua própria conduta. É assim, uma se sobrepondo a outra, e todas querendo para si o título de melhor conduta cristã para, posteriormente, julgar como bem entendem a próxima geração e tentar conduzi-la a seus moldes. Todo sábio reclama para si seus discípulos. Todo discípulo quer, um dia, ser sábio para reclamar os seus. A palavra na boca de um ancião decrépito é revestida de ouro e possui a força de uma verdade. Escutemo-na.
“Você, que morou no interior, sabe como é a disciplina. Eu fico maravilhada com o povo do interior, como são educados, disciplinados! E como respeitam a religião! Você vê, bate as 6 horas da noite, todo mundo tira o chapéu pra rezar! E o que quer que façam, pedem bênção ao pai, a mãe.”
As coisas mudaram. É, as coisas mudam. Que tapa na cara dos conservadores, que iluminação! Que descoberta! Não me interesso por esse velho discurso manjado sobre como as coisas estão diferentes e piores, de como a juventude se perdeu, de como o país caiu na miséria e todo esse blá blá blá cheio de empáfia e falso moralismo sobre tudo e todos. De alguma forma, estamos todos em contradição. E eu não me importo. Não me importo se eu concordo ou discordo deles, mas não quero ouvi-los, não gosto de quem toma partidos extremos. Sou da incerteza, do imponderável. E não me mato em dúvidas. De fato, é um ciclo vicioso, e todos querem desatar a malha que teceram. Provavelmente não se lembram de como lutaram contra a repressão do seu tradicionalismo cultural, de como ao menos puderam respirar melhor depois que as correntes conservadoras começaram a ceder e afrouxar. É a memória curta e a falta de reflexão crítica. Absorvem informações demais que tomam todo o lugar na mente e a deixam mais decrépita e miasmática do que o tempo consegue fazê-lo. Mas eu não quero criticá-los. Arrisco:
“Só que a promiscuidade é bem frequente, né?”.
Com certeza a promiscuidade no interior é grande, mas isso todo mundo abstrai, nessas horas. É papo de cabra macho que abusa das investidas e dos sucessos para contar vantagem sobre os amigos. Mas isso é entre amigo homem. Isso não é conversa que se tenha com uma dama, numa reunião de família.
Todos concordam e se calam; esqueçamos o assunto. Não é coisa que cristão decente discuta. Voltemos a Faustão. É reprise. Porra.

Parte 2: Retorno à infância da Cognição
Uma garotinha corre pela rua, entre as poças de lama das chuvas torrenciais da tarde, seu vestido drapeja esvoaçante; outros dois menininhos correm também e sorriem estridentes. A garotinha pisa, subitamente, numa das poças de lama que respinga por tudo quanto é lugar e também pelo seu vestido. Ela não se importa, apenas ri, em toda sua inocência, despretensiosa, é como se satirizasse toda essa vida coerciva, rude e exigente. Ela apenas não sabe o que virá. A vida não existe para ela; apenas o momento, as calçadas resfriadas, úmidas, que resistiram durante o dia todo à descarga torrencial de gotas pontiagudas em sua carapaça desgastada e esburacada; e a noite resplandecente, que chegou como uma notícia alegre depois do temporal monótono da tarde, e a lua gélida e protuberante na imensidão escura do céu, as estrelas silenciosas que se escondem nas nuvens para depois reaparecerem com brilho mais intenso e mais evidente; e as nuvens roseaplúmbeas que escorrem lenientes pelo céu e se fundem, e se transformam e se reformam e finalmente se redefinem, mutáveis e incertas. E as luzes lacrimais dos postes, difusas como lágrimas nos olhos. Apenas o momento e o espaço, em sua coexistência limítrofe, em seus conceitos abstratos, é tudo o que existe para a menina. Enquanto ela tiver espaço para correr e seu momento de diversão, enquanto seus pais permitirem que brinque com seus amiguinhos, ela será feliz – numa eternidade que durará por alguns minutos.
A infância, apesar de ingênua, não é facilmente modelável, é teimosa e resistente; é quando as leis sociais e os regramentos convencionais podem ser transgredidos sem maiores punições. É como Adão e Eva no Éden antes de experimentarem o fruto do conhecimento. Na verdade, o mito de Adão e Eva é uma metáfora perfeita para explicar a ingenuidade e inocência da criança.
Sigo meu caminho, mas me aproximo delas. A menina, mais próxima, me olha e mantém seu olhar, porque eu olho nos olhos dela. Eu sou mais fraco, desvio os meus primeiro. Ela continua sua brincadeira. Eu paro e observo. A menina percebe que eu ainda estou ali. Ela se vira e se aproxima. Eu não me sinto altivo, observando-a se aproximar, pelo contrário, é como se a menina fosse uma espécie de sábio que dominasse todo tipo de conhecimento, e eu, apenas um discípulo atormentado pelas dúvidas e questões humanas. Sinto-me acuado. Olhamo-nos.
“Você é um estranho. Vai me seqüestrar?”, ela diz.
“Não, não vou te seqüestrar”, respondo, não menos aliviado da fraqueza que me acometeu. “Você deveria ter cuidado, a rua está esquisita”, digo.
“Não quer brincar?”
“Não, obrigado. Por que não volta pra casa?”
“Estou brincando, não ta vendo?”
Não sei o que dizer.
“Mamãe diz que todo mundo que é mais velho sabe de muita coisa e pode me ensinar muita coisa”, ela diz.
“Eu não tenho nada pra te ensinar. Você é que me diz muita coisa.”
“Eu?”
Os meninos agora se aproximam, desconfiados. Acho que pensam que sou um seqüestrador e em suas mentes infantis e fantasiosas, pensam em me fazer em pedacinhos, como seus super-heróis fazem com os vilões. Mas eu apenas os observo se aproximar.
“Por que não volta a brincar com eles?”, pergunto a menina, mas os garotos já chegaram.
Eles se olham e os meninos não têm mais a expressão receosa no rosto. Eles me olham curiosos agora.
“Quem é você?”, um deles pergunta.
“É meu novo amigo”, a menina se precipita em responder.
“Não, não sou seu amigo. Sou um estranho, você não pode fazer amizade com um estranho, assim, de uma hora pra outra”, eu digo em tom paternal.
“Por que não vem brincar com a gente?”, pergunta o outro menino.
“Não posso, tenho que ir”.
Não sabemos o que dizer agora, mas não é nada constrangedor estar com eles. Sinto-me um pouco mais livre, e uma sensação de que sou mais velho do que eles me acomete. Estou de volta à realidade, nada de dimensão filosófica. Por um momento, penso em como cheguei até onde estou, em como me transformei no que sou hoje. Penso por qual caminho segui e quais os acasos me guiaram por aqui e me desviaram do caminho convencional que meus pais desejaram para mim. Tiro um cigarro da carteira no meu bolso e, com o isqueiro, acendo. Os meninos, de olhos arregalados, surpresos, exclamam, como se eu tivesse cometido o maior crime do mundo:
“Você fuma!”
Perdi meus créditos com os pirralhos, eu penso. Agora me rebaixaram a um nível quase ignominioso, desprezível. Eu os entendo, eu mesmo me reprimo por isso. Mas eles ainda não entendem. Talvez nunca entendam, e, com suas mentes obtusas, abominarão todos que praticam esse ato execrável para a sociedade convencional.
Por um momento, achei que tinha sido iluminado com todo o conhecimento lúdico e transcendental que só as crianças propiciam, achei que tinha alcançado uma espécie de satori, e quase cai na ingenuidade tão aclamada e exaltada por Kerouac. Impressões impressionistas, apenas. Eu era eu e sustentava nas costas o baque da realidade em peso. E as crianças correram desengonçadas, foram continuar suas brincadeiras em outro lugar. Logo estariam transando uma com as outras, elas mesmas praticariam ménage à trois, e os conceitos de amizade e amor se confundiriam e, finalmente, elas alcançariam o conhecimento absoluto, a verdade que move o mundo, e toda essa abstração e esse transcendentalismo de que falam os discursos metafísicos das religiões e seitas e filosofias sobre existência humana.
Ou simplesmente nossa sociedade convencional e situacionista consiga moldá-los de acordo com seus contornos e suas subjeções impositivas, com seus regramentos e seu tradicionalismo miasmático e estático no qual ela mesma definha e se putrefaz. Mas a carne é fraca, o pecado é tentador. Segui meu caminho enquanto os pirralhos me abominavam por tudo o que eu sou e por tudo o que elas pensam que sou. Fui embora, sob essa noite quase límpida e impoluta, sob a imensidão escura do céu, sem rumos e sem profecias. Sem verdades. Só o pensamento e as vontades. E os desejos sexuais.