quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Não tenho muito a dizer, mas há muito a ser dito.

Não tenho muito a dizer. Tudo o que poderia ser contado, tudo que tivesse realmente alguma relevância, não seria dito com tanta clareza, com todas as verdades possíveis que sobrecarregam os fatos, os instantes, ou mesmo a vida. Mas há tanto a dizer, tanto a contar, e ninguém para ouvir. E ninguém para falar. As palavras ressoam no vento, vozes distantes, contam histórias de quem veio e se foi, e cujos rastros se confundem com tantos outros mil que por ali passaram. Sussurros que se confundem na memória, que nos impedem de nos esquecermos, que tentam nos lembrar de alguma coisa que ressoa vagamente, mas que não se distingue e desvanece no tumulto avassalador dos nossos dias. Tanta coisa para se lembrar. E a memória sendo absorvida pelo tempo. O mundo poderia girar ao contrário.

Não, não me escutam. Agora que posso dizer algo, não me escutam. Deixam que o tempo passe e leve com ele a memória frágil que se descreve na história, mas que se perde no meio dos maiores eventos mundiais. Um dia, eu acordo e digo a mim mesmo: “acorde”, incrédulo e ainda desnorteado por ter deixado o abismo inefável dos sonhos e tombado bruscamente na concretude da realidade. Eu fugirei, um dia, e não precisarão me procurar. Estarei a sua frente, mas não estarei em mim. Nesse dia, o mundo terá, finalmente, me engolido.

Às vezes me pego quase abstraído num vazio atordoante, estendido numa plenitude etérea, num silêncio abismal. É quase como se me acolhesse o infinito cósmico, como se me aceitasse além da vida e das possibilidades materiais. Eu sumo, por instantes, desapareço, abstraio-me. Quando acordo desse delírio, é um baque. Sinto a respiração constante, interminável, que me confere vida, os pensamentos transbordam e se derramam, não consigo distingui-los e me perco nessa tormenta mental. Tento voltar àquele estado hipnótico e anestésico, mas não depende de uma vontade consciente, de um raciocínio calculado ou de um pensamento obstinado; é preciso distender-se e se deixar levar, mas quanto mais persisto nesse propósito, mais distante fico do meu objetivo. Afinal, desisto.

Li muitos livros, procurei neles alguma coisa que faltava em mim, ou que iluminasse com razão o vazio de ignorância em que sempre me percebi. Procurei neles momentos extáticos de lucidez, de compreensão, de verdade, e às vezes até os encontrava, mas eram paliativos inefetivos, pois percebia que não eram o tipo de certeza ou verdade que eu procurava ou precisava encontrar, mas respostas ou explicações que me distanciavam ainda mais do que eu gostaria de saber. Na verdade, desconhecia meus objetivos, meus propósitos, não sabia realmente o que procurava, mas pensava encontrar em cada resposta com a qual eu, em meu entusiasmo, me deparava e me identificava, pensando tê-la procurado durante tanto tempo. No entanto, novas dúvidas inundavam minha mente e substituíam as velhas às quais acreditava ter respondido. E assim não acumulava perguntas, mas respostas, explicações, diagnósticos, muitos deles, descobria anatomicamente as entranhas do meu ser, na ilusão de que eram limitadas. Porém, acredito, o cérebro humano é conjugado ao infinito do nosso multiverso e esconde incalculável número de mistérios. Por isso, sentia compreender-me, nesses milésimos delirantes, ao me abstrair nessa vacuidade de inconsciência, dormente, hipnotizado, distraído, acreditava compreender o infinito e o mistério da vida.

Eram apenas verdades indefinidas,mutáveis, verdades efêmeras que se deformavam em minhas mãos, ou que me escapavam como água e se reformulavam, se redesenhavam longe de mim. Sentia-me frustrado e cansado. E, de novo, as mesmas lacunas apareciam, ou novas surgiam. Aprendi com o tempo, e na verdade demorei a aprender, que tudo em que acreditava era inconstante e instável, mutável. Diluía-se com o tempo, desintegrava-se ou se transformava. Por isso, nunca aderi a nenhuma ideologia, religião ou filosofia de vida. Na maioria das vezes, os conceitos que fazia das novas crenças obedeciam a uma conveniência pressuposta e inconsciente. Todos os meus laços com a vida eram frágeis e insubstanciais. Nunca acreditei na vida, porque toda ela desembocava num mistério irrespondível e inevitável. A mim, a vida parecia nada mais que a reprodução de uma das milhões de vidas que uma vez floresceram neste mundo. Nada me era novo, tudo parecia repetir-se como um filme, como uma história revisitada infinitas vezes.

Lembro quando, em minha infância já adormecida pelo tempo e sufocada pela euforia da juventude, me escondia das pessoas como se fossem monstros. Eu não as repudiava; sentia, pelo contrário, uma estima parva de quem acaba de se descobrir consciente no mundo. Sentia certo medo, sim, mas não bastante para anuviar minha curiosidade. Observava a vida com ar sereno e, diria até, desinteressado, não com um olhar científico, como o de um antropólogo. Minha curiosidade se resumia a vê-los em suas mais diversas reações, em suas manifestações, não para catalogá-las, o que às vezes me era inevitável, mas para contemplá-las, admirá-las. Às vezes , não as observava com meus próprios olhos, mas me transportava para os delas. Eu não as via, eu procurava ver o que elas viam; na minha lógica cognitiva, o que elas faziam estava diretamente ligado ao que viam, e, devido a instruções prévias ou à freqüência do trabalho, soubessem exatamente a utilidade de cada objeto usado. Causa e conseqüência ligavam-se através da visão, o mundo só funcionava através dos nossos olhos – foi assim que entendi a visão como o sentido mais importante do ser humano. É claro que essa concepção transformou-se com o tempo, na medida em que meus sentidos se aprumavam a cada dia. Mas essa lição não me foi de toda descartada, compreendi com ela uma das verdades que mais me intrigam e das quais mais duvido: o mundo só existe na medida em que o apreendemos em nossos sentidos. Não cheguei a nenhuma nova conclusão, mas minha teoria demanda mais digressões, e não pretendo me estender nesse assunto.

Minha melhor diversão consistia em procurar esconderijos secretos, onde eu passava horas, aconchegado nos meus pensamentos. Sonhava com um abrigo onde eu poderia viver, cada vez mais distante, um lugar que me resguardasse do tumulto humano. Imaginava o lugar, via-me deitado, sonhando, ou brincando com meus brinquedos, ou com alguns amigos que pudesse trazer vez ou outra. Deveria ser um lugar à parte, protegido, onde nenhuma guerra pudesse o ameaçar. E eu levaria pra lá as pessoas de quem mais gostava. Em meu altruísmo infantil e ingênuo, imaginava, também, um galpão profundo, ao lado do meu abrigo, que abrigasse o maior número de pessoas boas, que mereciam a salvação. Eu não sei bem como faria para avaliar a bondade dessas pessoas, mas lembro que não me sentia confortável ao pensar que eu tivesse de selecionar os candidatos. E ainda assim, desejava a privacidade que um lugar à parte pudesse me oferecer. Quando pequeno não sabia, mas o que eu queria mesmo era me ausentar, ser um espírito num lugar à parte, um ser volatilizado, que se pusesse no mundo somente para observar, para assistir a um eterno filme que se descreve nas páginas da História, mas que se perde no fluxo interminável e inexorável do tempo.
Alguns desejos profundos jamais nos deixam, mesmo depois que a própria vida se revela em sua multiplicidade de escolhas, mesmo que ela nos ofereça novas possibilidades de prazer, novos desejos. Alguns desejos, me parece, são inatos. Hoje, vivo na oscilação entre o desejo do vazio, esse desejo que me acompanha desde cedo, e os ímpetos avassaladores e instintivos da juventude. A esses ímpetos, não os taxaria de vícios, termo bastante negativo para designar uma característica inerente a esse estágio efervescente da vida humana. Ainda que defenda a antilógica do nosso instinto, me apetece a comodidade que o desejo do vazio, o desejo de não pensar, de me abstrair, pode proporcionar. Estou sempre a meio caminho entre essas duas partes do meu ser, pois eu também sou desejo.

Na escola, nunca aprendi muita coisa. Na verdade, nunca me ensinaram nada, aprendi o que conseguia assimilar por mim mesmo e o que achava conveniente ou o que me interessava. Eles diziam, e tentavam nos fazer acreditar, que estavam construindo nossa personalidade, nosso ser social, mas a verdade é que nos exauriam de nossas próprias intuições, de nossa própria lógica. Eles esfarelavam qualquer autenticidade de nossa personalidade, e nos moldavam de acordo com suas teorias pedagógicas. Nunca me senti tão cerceado, e hoje sei disso mais do que nunca, como na escola.
E desde cedo, percebi minha incompatibilidade em relação aos grupos sociais. Talvez tenha sido rejeitado, mas a verdade é que eu me afastei, por conta própria, de qualquer relação. Lembro como temia meus colegas de sala e de como um sentimento de humilhação me perseguia, como fantasma, invisível como uma vaga sensação que, subitamente, se manifestava em toda sua intensidade, em qualquer lugar, sem qualquer razão. Certo dia, exasperado por ter de suportar mais um dia rotineiro de aula, decidi debandar do colégio e me ausentar no aeroporto da cidade, que ficava bem perto. Não lembro bem como esgotei as horas naquela manhã, mas não podia voltar pra casa cedo demais. Talvez tenha lido ou visto o trânsito escasso dos viajantes. Mas lembro quando surgiram na escada rolante, meus colegas de sala mais indesejáveis, os mais exasperantes, e lembro como me apavorei, pois me encontrava sozinho e eles sempre me ameaçavam ou me injuriavam. Temi como nunca ser humilhado ali, em público. Na escola, já estava estigmatizado e não me importava tanto ser xingado ou coisa assim, pois havia uma certa cumplicidade entre os próprios importunados pelo grupinho pop dos ‘malfeitores’. Do lado de fora, não havia leis ou qualquer tipo de proteção, eu não tinha em que me apoiar, como me defender. Na escola, mesmo que houvesse uma ameaça, uma tensão, era algo invisível, que somente se percebia, mas que não se expunha tanto. A humilhação pairava sobre os alunos, mas não podíamos delatar os ‘malfeitores’, pois, ao menos na maioria das vezes, a humilhação era apenas moral, não física, apesar dos empurrões discretos que nos davam pelos corredores. Naquele dia no aeroporto, me apavorei tanto que cheguei a me esconder por entre umas placas de metal que cercavam a mesa onde me sentava. De alguma forma, consegui tomar as escadas e sai do aeroporto discretamente, sem ser notado. Mas logo quando me vi na rua e pude sentir um instante milesimático de alívio, tive um dos mais fortes sentimentos de frustração e impotência que já tinha me assaltado. Tanto que lembro ter chorado durante todo o percurso para casa, e de ter passado a tarde inteira entre o sono e as lembranças amargas daquela manhã que eu remoia e que me revolviam por dentro. Sentia-me humilhado, e essa humilhação e o medo dos outros jamais me abandonaram durante minha adolescência. Tanto estropiaram minhas sensibilidades que me tornei um ser instável, hipocondríaco, oscilando entre as emoções intensas e a mera indiferença pelos acontecimentos da vida. Hoje, olho para trás, ainda que adolescente como sou, com um sorriso de deboche, penso o quanto fui ingênuo e temeroso. Minhas frustrações e decepções ainda me revolvem por dentro, mas não deixam de ser risíveis, são minhas piadas internas, palavras que fazem parte do meu ser, mas que, a mim, não me soam tão trágicas. Penso em como uma arma teria resolvido meus problemas: jamais teria hesitado diante de um daqueles garotinhos irritantes, e não me deixaria jamais ser dissuadido por qualquer sentimento moral ou honroso, não hesitaria em ser covarde. Teria disparado a arma.

Minha casa era o meu grande refúgio. No meu quarto, repassava na memória os acontecimentos do dia, estudava, brincava com meus brinquedos ou jogava videogame. Mas minha maior distração, que hoje se tornou a mais intensa das paixões, a mais indizível das boas sensações, era a música. Nem sei como descobri a música, essa é a verdade. Meus pais nunca estimularam em mim qualquer sentimento artístico, mas eu não os culpo por isso. A música se revelou para mim nos seus acordes mais banais e mais discretos, e foi se apoderando do meu ser na medida em que fazia vibrar as cordas mais sensíveis da minha alma. Eu não tinha aparelho de som, não sabia usá-lo e não possuía nenhum CD de música. O que ouvia, surgia de cantos misteriosos os quais não me preocupava em procurar. Escutava algumas notas e me deitava para acompanhá-las, já que surgiam vagamente, no meio dos rugidos sonoros da rua e da avenida. E quando não podia escutá-las bem, simplesmente colocava a fita de videogame no aparelho e ouvia as músicas que mais me agradavam. Começava a jogar certa fase do jogo só para ouvir a trilha sonora do mapa. E passava horas, horas intermináveis de grandes sensações e verdadeiras inspirações. Pois uma das primeiras coisas que descobri em relação à música, é que ela me inspirava mais do que qualquer coisa. Ela me enlevava a um nível espiritual de plenitude, de alívio e de evasão. Sentia-me escoar de meus problemas, de preocupações, sentia-me distender. É claro que só recentemente essas sensações mais intensas se tornaram mais frequentes, mais perceptivas; na minha infância, eu não parecia consciente bastante para notar tais sensações, mas isso não quer dizer que eu não as tinha. Só agora reconheço, conscientemente, sua importância e sua qualidade de arte suprema.

Meus pais se perguntavam porque eu passava horas deitado, com a TV ligada, e o jogo parado, sem nada fazer. Pediam que eu desligasse os aparelhos, para economizar energia, mesmo que eu me justificasse, dizendo que escutava música. Eu não compreendia que aquelas sensações eram mais importantes para mim do que a necessidade de economizarmos energia. Acabava desligando os aparelhos de TV e de videogame. Eu também me sentia bem cantando músicas de programas que via na TV, ou canções das rádios dos vizinhos. Alguns deles ouviam as mesmas músicas todo dia e algumas delas me agradavam; cantava todo enrolado as letras, pois mesmo que algumas fossem nacionais, eu não as ouvia direito. As canções, na medida que se repetiam, iam-se gravando na mente, viciosamente. Passava semanas com uma música na cabeça até começar a tentar esquecê-la – o que era um problema, porque, às vezes, nem dormir eu conseguia. Passava horas deitado, no escuro do meu quarto, tentando me desfazer dos pensamentos para finalmente alcançar o abismo dos sonhos, mas lá estava, tocando ininterruptamente aquela música tantas vezes escutada pelo vizinho. O pior é que as músicas que ficavam se repetindo na cabeça eram as mais desagradáveis, as que eu realmente não gostava, mas que possuíam alguma melodia penetrante.

Duas casas ao lado da minha, havia um aprendiz de piano. Os dias mais etéreos de minha vida, vivenciei no meu quarto, deitado, sempre com um caderno ou um livro que eu descansava no colo, enquanto ouvia soar vagamente as notas desconcertadas do pianista juvenil que adentravam pela janela. Entre os ruídos e rangidos metálicos dos automóveis na avenida, dos trabalhadores da ferraria ao lado, dos moleques que brincavam e gritavam pela rua, aquelas notas inocentes, amadoras, passavam quase despercebidas, suspensas no ar, mas se dispuséssemos nossa atenção nelas, escutaríamos sua melodia encantada, fascinante, apesar de errática e frágil. Aquelas notas pareciam vibrar indiferentes a tudo, pareciam desejar o vazio onde se dissipariam para sempre, longe de qualquer ruído, longe de si mesmas, mas continham uma sinceridade e uma humildade que me fascinavam e me hipnotizavam. Aquelas notas inocentes, que tentavam construir alguma melodia, interrompidas constantemente, que soavam como a mais pura e honesta expressão de um adolescente, tornaram-se, para mim, o emblema de minha infância. Se penso naquelas tardes, vejo-as como que suspensas no espaço-tempo, etéreas, num lugar à parte, quase oníricas, circundadas por uma áurea de nostalgia e de beleza. E a mim, me vejo como um ser insubstancial, que pairava na plenitude do nosso mundo, um ser feito de energia, inconsciente, que se conjugava ao infinito de nosso multiverso, que vibrava em harmonia àquelas notas. Mas reconheço que nem tudo era tão perfeito assim.

Assim mesmo, fui me afeiçoando à arte da música, apesar de jamais ter tentado obstinadamente aprendê-la. Talvez por falta de disciplina, talvez por falta de talento, reconheci que minha relação com a música era meramente de passividade; ela existia, para mim, para que eu a sentisse. É a única arte que jamais tentarei alcançar por profissionalismo; é para mim a única arte intangível, a suprema arte, a arte mais completa. Falar de mim, por exemplo, com todas as verdades, com plena sinceridade, seria impossível se apenas utilizasse os códigos limitados da escrita. Mas tudo isso eu poderia contar através da música, todos os meus verdadeiros sentimentos, tudo que penso. E mesmo aquelas notas constantemente interrompidas da minha infância, aquelas notas simples e inocentes, que por vezes destoavam entre si, formavam doces frases melódicas por entre os ruídos ásperos vindos da rua, e me inspiravam, me conduziam a um mundo suspenso, adimensional; eu mesmo, às vezes, encontrava nelas novas sequências melódicas, que ainda hoje resistem ao tempo na minha mente. Depois dessa primeira fase de descoberta, entendi que a música poderia falar o que eu queria ouvir, ou falar o que eu gostaria de dizer. Assim fui escutando músicas que falavam por mim. Hoje, com a quantidade de sensações, de experiências, de seres que fui acumulando, meu acervo de músicas tornou-se mais que eclético. Ouço de tudo, ou quase tudo, e sei que ainda há muito a ouvir. A música trilha a minha vida na medida em que acrescento em mim novas experiências. Hoje, digo deliberadamente: antes cego do que surdo.

Mas escrever é, para mim, um refúgio. Quando escrevo, me recrio. Imagino-me num conto e delimito minha existência às páginas desse conto, mesmo que não haja fim nem começo. E me pergunto até onde vai a transcendência dessa existência literária e paralela. Olho distante, para o fim da rua que se estende diante do meu prédio, e vejo pequenas luzes de carros que se movem e resplandecem melancolicamente por entre os galhos das árvores, e há um silêncio espectral e uma ansiedade que aos poucos é debelada pelo rugido sonoro que se intensifica na medida em que os carros se aproximam. Sinto uma ânsia, uma vontade de me exprimir e me espremer e me pronunciar. Uma vontade de escrever tudo, exatamente tudo, escrever infinitamente tudo. Penso e acredito, exultante, verdadeiramente inspirado, que posso escrever decididamente tudo e sobre tudo, com todos os mínimos detalhes. Mas, inevitavelmente, frustro-me por não conseguir distinguir as ideias, as palavras, por não conseguir escrever tudo de uma vez no exato instante em que minha inspiração se estende aos níveis apoteóticos. Transcrever a beleza das minhas visões, os ruídos arrítmicos, destoantes, anti-melódicos, que ouço, e que se transformam em música em mim, a excitação exultante dos meus sentidos, é isso que me agrada e é isso que desejo agora. Vejo, da minha varanda, os prédios, as luzes, a avenida e suas artérias, as escassas árvores, os escassos carros que transitam na madrugada, serenamente, melancolicamente. Sinto vontade de plastificar toda essa paisagem, tudo isso. Escrevo essas memórias para tentar me descobrir em minha infância, para talvez revisitar o caminho místico e ingênuo por mim traçado e quem sabe encontrar o momento exato em que me desviei. Se é que minha existência não descreve um traçado inevitável por entre as possibilidades da vida. Não falo de destino, não acredito nele. Mas sei que não tenho idade para analisar esse passado criticamente, sinto lacunas ao tentar responder algumas perguntas, olho para trás com um olhar inocente, puro, como que impressionado, o olhar equivocado de um jovem. Suspiro, e um ar gélido penetra minha pele com pequenas agulhas. Nesses momentos amenos em que minhas pulsões se aprumam, chego a compreender, conformado, a inexorabilidade da vida, e não me revolto. Simplesmente, deixo-me fluir, à deriva, deixo-me eclipsar, como se possuísse o silêncio resignado de um sol que há de se pôr no fim da tarde.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Instante (ou Segredos)

"Deus perdoa os que fodem", Tinto Brass.

Sempre achei que nunca contamos tudo. Aquele detalhe, um gesto, uma palavra, o olhar deflagrador entre todos os outros, a confirmação de que os olhares precedentes não se esbarraram por pura coincidência, por acaso, mas porque se atraíam. Talvez não soubesse dizer qual, dentre todos, foi aquele que legitimara alguma paixão e confessara a intencionalidade do gesto. Aquele instante infotografável, irregistrável. Talvez um sorriso. Talvez. Não existe lógica matemática que formule todos os gestos, palavras, sorrisos, insinuações que me levaram até ela.

Um tanto distante um do outro, sim, mas em algum ponto nossos pensamentos se tocavam. Em algum ponto adimensional, onde se desfaz, por leis inconcebíveis e específicas, a validade do nosso conceito de espaço-tempo. Sabíamos, no entanto, e é isso que importa, que nossos espíritos se tateavam e se descobriam. E quando nossos olhares se esbarravam, era porque precisávamos reforçar a linha que nos conectava espiritualmente e nos certificar de que essa linha não era frágil ou apenas um equívoco. Por isso o impacto: um soco no peito, uma mão que constringe o coração e que o tensiona com mil emoções, com todas as emoções que implodem de uma paixão. E por isso o suspiro depois que nos virávamos, cada um para seu grupo de conversa. Emergíamos de um estado quase hipnótico, apesar de milesimático; mas como um corpo que se afogava e finalmente encontrasse ar para respirar, a tensão se dissipava aos poucos e deixava seqüelas, vestígios. E a vontade de nos encontrarmos de novo no olhar.

Era uma troca espontânea de volúpias. O desejo alimentava-se dos olhares, nossos espíritos se atraíam, e nossos corpos sentiam a necessidade do toque. Distraíamo-nos nas conversas, nas piadinhas, e de vez em quando conseguíamos trocar palavras diretas: comentários irrelevantes, que se dispersavam e se desfaziam nos ouvidos, restando apenas o eco da voz do outro, como uma espécie de recordação, não para ser contemplada, não uma voz enaltecida e adocicada pela paixão, mas como uma identidade, que revelava mais de seu locutor do que as palavras ditas poderiam fazê-lo. E nessa linguagem polissêmica e incerta que é a troca de olhares, nos revelávamos e nos insinuávamos, nos comunicávamos verdadeiramente, num fluxo desordenado de consciência, de emoções, que não se distinguiam e que se confundiam no reflexo atordoante da íris, de onde não podiam transpassar.

Nenhuma fórmula matemática, até agora, só o desejo vago de descrever tudo, sem evitar, no entanto e infelizmente, a redução dos fatos e das impressões. Talvez poesia fosse a melhor linguagem para transmitir as sensações daquele momento, mas teimo em tentar revisitar os fatos através da memória, revivê-los e transcrevê-los. Eu deveria me calar. Algumas coisas guardamos somente para nós. Mas quando os sentimentos transbordam, é preciso desabafar e despejar o excesso em algum lugar. Escolhi o papel e por isso os garranchos e as manchas, a prova de que as palavras não conseguiram dizer tudo ou que se equivocaram no que disseram.

A madrugada absorvia os últimos ecos do dia, o silêncio da noite se espalhava pelas ruas. Só o bar onde estávamos era imune; a balbúrdia deixara ecos de palavras avulsas suspensos no ar, não se distinguiam as vozes, nem se identificavam os donos. Já ia a tantas a madrugada, a música tocava, mas era possível perceber os ruídos e as falhas das caixas de som. Apenas um murmúrio tranqüilo das conversas alheias, um murmúrio cansado da euforia de outrora. Sentia-se o ar gélido e úmido da madrugada, e os objetos faziam-se mais claros e resplandecentes para a visão um pouco atordoada pela embriaguez. Detrás de nossas mesas, as garrafas de cerveja se entulhavam, vazias, ou quase vazias, como tudo o que tínhamos para dizer ou poderíamos dizer. Chovia lá fora, uma garoa fininha, mas que entrava como frias agulhas na pele. Brincávamos com nossos cigarros e desmanchávamos seus pequenos e frágeis cilindros de cinzas, quando alguém se despediu para ir embora. Decidimos, então, irmos todos de uma vez.

Teria sido a distância espacial, mesmo pouca e transitável, desobstruída e sem obstáculos intransponíveis, que nos impedia de nos tocarmos? Beijinhos e abraços de despedidas, a cordialidade ingênua do aperto de mão entre amigos, até que ela se aproximou. Um pervertido teria aproveitado a oportunidade para satisfazer seu desejo táctil. Abraçamo-nos, com a cordialidade de recém-conhecidos, mas não com ingenuidade e intenções comedidas. E foi como um golpe psíquico, hipnótico. Nossos corpos ataram-se, enquanto nossos espíritos descarregavam cargas elétricas de efeitos atordoantes; nossas pulsões evadiam-se e era possível sentir o impacto sísmico que tremulava os corpos de um e de outro; nossas cabeças entrelaçadas, ela descansava a dela no meu ombro; um abraço cordial de despedida que se prolongou por pelo menos mais um segundo que o normal e foi suficiente para dissolver dúvidas e consolidar certezas. Senti seu cabelo e sua nuca, pareciam mais suaves aos meus dedos. Seu corpo parecia suspenso e entregue. Ao afastarmo-nos, seu rosto friccionou-se ao meu até as últimas células que circundavam os lábios; sua boca tão milesimaticamente perto da minha, e, no entanto, tão distante de um beijo, tão impossível, tão inalcançável. Até o último momento em que nos olhamos um nos olhos do outro, como se comunicássemos nossos protestos por essa oportunidade desperdiçada. Minha mão deslizou-se por seu braço, como uma última carícia que desejasse a eternidade daquele instante. Deslizou-se até a ponta de nossos dedos, e como ainda atraídos energicamente, esqueceram-se suspensos no ar por alguns milésimos.

Efeito atordoante que me deixou alheio por alguns instantes, enquanto nossos amigos combinavam a volta para casa. Não me saia da memória aquele abraço, seu corpo quase entregue ao meu, deixando-se suspender, desejando o etéreo, minhas mãos que deslizavam nos seus braços até a ponta dos dedos, e aquele último olhar. E pensava nas oportunidades desperdiçadas, nas possibilidades, nos finais secundários.

Ecos de gemidos ofegantes, o suor e a saliva libidinosa, o travesseiro, como um corpo indefeso, apertado e abarrotado entre os braços, os lençóis manchados caídos ao chão, o coração sísmico pulsante, pensamentos eróticos tonitruantes, desejos concupiscentes da ingenuidade infantil de quem desconhece o pecado, transe alucinante de quem chega ao limiar do sono e não consegue se libertar da capa negra de sonhos abismais que o encobre. Distração imprevisível que me pegava de surpresa; e eu me pegava absorto, observando o nada, e o desejo à flor da pele. Num eterno navio sem mar, sem terras à vista, só o pensamento distante, além, e o brilho nos olhos de quem sonha acordado. E eu flutuava na correnteza dos errantes, sem atenção para cachoeiras e redemoinhos, apenas à deriva, com a dor e a vontade de quem acaba de se apaixonar. Segredos que só a cama e o travesseiro guardariam como máculas. E que ressoariam para sempre nos ouvidos de quem os auscultasse.

Durante semanas, pensei nela. Não por estar apaixonado, mas pelo impacto do ineditismo do momento que nos uniu. Um golpe hipnótico atordoante. Diria que, se a vida não fosse delineada pelas veleidades do destino, teria sido produto dos acasos o fato de estudarmos no mesmo centro científico da universidade. E eu jamais a teria notado passar ao meu lado, como tantas vezes deve ter passado, pelo átrio ou pelos corredores do prédio onde estudávamos. O dia em que nos conhecemos nos marcou com magnetos que nos atrairiam sempre estivéssemos próximos um do outro.

O dia era assinalado pelas horas em que nos esbarrávamos, como uma relação discreta que tentava se adaptar a uma rotina, mas que nos divertia com a imprevisibilidade dos encontros casuais. Ainda que me sujeitasse a cumprimentá-la, com discrição e até uma certa timidez, na frente do seu namorado, não me importunava nem torturava a ideia de que ela estava comprometida. Conversávamos besteiras, quando nos víamos a sós. Eu tentava me aproximar, de alguma forma, mas talvez não fosse ousado suficiente para atravessar as barreiras da timidez e alcançar alguma intimidade. E quando eu a encontrava ao longe, enquanto percorríamos nossos trajetos particulares, cada um por seu caminho, sentia-me num filme, numa cena em slowmotion, nós dois no mesmo plano, os olhos dela nos meus, os passos e os ruídos sonoros não eram abstraídos de todo, mas abafados pela tensão do momento que obstruía meus sentidos e me deixava suspenso.

Tínhamos terminado as aulas, podíamos ir pra casa. No campus, pairava a melancolia do silêncio da tarde, e nós conversávamos futilidades. Ela disse que iria buscar alguma coisa em algum lugar e me chamou para irmos juntos. Entramos no prédio onde estudávamos. Subimos as escadas. Caminhávamos sozinhos pelo corredor. O sol escanteava-se por entre os prédios da cidade. O corredor estendia-se e já tínhamos percorrido um quarto do seu comprimento. E como nossos pensamentos confluíssem entre nós dois, telepaticamente, e as volúpias inflamassem nossos corpos e os magnetizavam, puxei seu braço e a beijei. Um ruído crescente tomou conta dos meus ouvidos. Não consegui aplacar a força tumultuosa das emoções; não houve distensão no ato. Como desmoronasse a razão, escutei o estrondo do abalo sísmico que atingira minha mente e o peso e a tensão do momento; me libertei das amarras da timidez e dos comedimentos sociais, mas não foi como voar, flutuar no espaço e deixar suspenso o espírito com a delicadeza dos amantes que, como penas, titubeiam no ar. Pelo contrário, mantive-me no chão, com o peso dos escombros da razão e de toda concretude da realidade. Mas fui correspondido.

Como descarregasse de uma só vez todas as vontades, com o ímpeto de uma pulsão desmedida, um vômito irreprimível, desenfreado, me afastei dela aturdido. Ela mostrou um sorriso de consentimento, de conivência, de aprovação, de paixão, de desejo satisfeito. Não sei. Nunca se sabe. Ela me apanhou pelo braço, deslizou por ele, como na primeira vez em que nos tocamos, e me levou à sala mais próxima. Entramos e assim que a porta foi fechada, ela me beijou de novo. Com as carícias ávidas e afoitas, tentamos satisfazer a necessidade premente de nos tocarmos, de sentirmos a pele um do outro a cada milímetro, em cada célula, uma vontade de pairarmos na plenitude do corpo um do outro. Era uma ânsia insaciável, ofegávamos, beijávamo-nos, mas o desejo transbordava nos corações, e não sabíamos de onde vinha a fonte que nos abastecia as paixões. Puxei sua blusa, que deslizou corpo acima, enquanto ela levantava os braços. Desfiz a ideia de jogo de turnos e eu mesmo tirei minha camisa, enquanto ela se desfazia das calças. Depois, ela tirou as minhas calças, e levou junto o que tinha por baixo. Ela me conduziu até uma banca, num leve empurrão com as pontas dos dedos, e ajoelhou-se diante de mim.

Nossa paixão durou os milésimos que um relâmpago demora a rasgar o céu, na mesma intensidade, com a mesma carga elétrica. Ela começou a me evitar, como se relutasse contra o desejo passageiro e incerto que alimentava nossa paixão, em favor do seu amor que quase pairava inerte num marasmo idílico, mas que tinha se modelado aos dias e às necessidades suas e de seu namorado, e não teria de sobreviver a tormentas e instabilidades da alma. Depois que transamos, naquele dia, ela me perguntou, quando já estávamos vestidos: “você acredita que eu amo meu namorado?”, e disse isso não como quem sente a culpa corroer-lhe a alma e deseja desabafar para aliviar a dor do remorso, mas como quem busca conivência e se sente à vontade para, francamente, deixar as coisas claras. Não duvidei, não duvido, hoje, e a admiro por não ter se arrependido. Eu me enviesei pelas armadilhas e ilusões de uma paixão que arde e inflama os sentidos e diz-se reconhecer como amor, mas que, afinal, não se realiza como tal. A verdade é que nunca acreditei no amor como uma pedra rara que se encontra nos confins do mundo, nas entranhas da terra, e que fosse única para cada ser humano. Para mim, bastaria a centelha daquela paixão que senti no dia em que nos conhecemos para acender algo mais, para nos enlevar, para, quem sabe, acordar em nós o amor.

Ainda nos encontrávamos quando comecei a namorar outra pessoa. Ela tentava me evitar, mas algo em nós pulsava e respirava ruidosamente. E só precisávamos nos encontrar, a sós, nos esbarrar por aí, para que a paixão reacendesse e acordasse com uma força que nos feria a carne. Sabíamos dos riscos, mas era implacável. Às vezes, andávamos juntos, eu com minha namorada, ela com o seu, e alguns amigos. Para não expor o grau de intimidade a que chegamos, evitávamos demonstrar provas de amizade incriminadoras. Talvez, a única coisa que nos denunciava estava no olhar, na maneira de como nossos olhos se encontravam, de como se olhavam e se enamoravam. Mas tudo que tínhamos para comunicar, através do olhar, dizíamos em poucos milésimos, de modo que seria impossível descobrir nossos segredos sem que se congelasse o instante exato em que nos olhávamos para analisar o brilho em nossos olhos que denunciava todas as intenções.

Deixamos de nos encontrar a sós. Rompemos. Como uma substância volátil, nossa paixão se expandiu e se destilou. Apenas um cheiro etílico forte pairava no ar, que ainda podia exercer sobre nossa carne um desejo, mas que evitávamos com certa maturidade. Nunca reprovei nossa relação, os impulsos voluptuosos que nos fazia transgredir as convenções e pular a cerca. Nunca entendi isso apenas como imaturidade, ímpetos descontrolados de um jovem; eu aceitei minha natureza e a tudo que ela estivesse predisposta. Não tenho remorsos. Teria costurado a vida de outra maneira, se a linha e as agulhas estivessem em minhas mãos. Teria continuado. Mas o tempo se encarrega de tomar o que dar, de unir e de separar, de construir e destruir.

No meu travesseiro, ressoam os sussurros longínquos que me recordam, no frio e no silêncio da noite, mesmo no recôndito do meu sonho, os segredos de um passado tão recente quanto remoto. E como um determinismo que atua sobre os sonhos, paira na atmosfera onírica um sentimento de nostalgia que me obriga a olhar para trás, mas que se evola no ardor das novas paixões que se personificam dentro de mim.

Não mais tento entender. Como tudo se desenrolou. Nada começou, nada terminou. Como palavras de um livro que escasseiam antes do ponto final, do desfecho. Como a tão pronunciada e banalizada frase, “a vida continua”, mesmo que aventuras como essa a permeiem sem permissão. Tantos acasos, tantas equações. E se não fosse o cálculo probabilístico, única matemática possível para equacionar o problema dos acasos, jamais saberia mapear o caminho que me levou até ela. E mesmo a probabilidade não poderia traçar nossos trajetos com precisão, pois faltariam os termos que identificariam as incógnitas da equação. Ainda não posso resolver essa questão.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Minha alma não tem nome

1. Me sinto como um tiro no escuro. Vejo vagamente, nos poucos milésimos de claridão, o corpo que será minha vítima. Não o reconheço. Não sei bem o que vi. Será que o vi? Espatifo-me. Tenho muitas possibilidades, nenhuma delas é um objetivo. Um tiro cego, arbitrário, uma bala perde-se no escuro, espatifa-se – não sei em quem ou em quê. Por que não vejo? Se me tiram a venda dos olhos, descubro-me num quarto escuro, sem portas e sem janelas. Apenas um cheiro úmido e um ar refrescante me acolhem e me fazem acreditar que não estou numa câmara hermética, asfixiante. Tento apalpar as paredes da minha existência: são frias, úmidas, são, além de tudo, desoladoras. Não precisei de mil filósofos nem mil sábios como conselheiros para que essa verdade, em tom catedrático e religioso, me fosse revelada. Ela compete só a mim, e sou eu quem a sinto; é uma verdade que me foi transcrita pelas minhas próprias percepções; assim me foi dita, traduzida, revelada. Sou eu quem a vivencio do modo como o faço. Minhas palavras talvez não digam nada, mas eu as escrevo com o sentimento que me é infligido por essa verdade. Sou eu quem as escrevo, não é mais ninguém. São verdades minhas. Tão bem como poderiam ser suas.

Uma porta branca se abre e uma luz cálida e calada invade a sala, revelando seu assoalho desgastado e carcomido. Nada mais, apenas uma sala vazia, empoeirada, desolada. As paredes estão úmidas e mofadas, parece que respiram; recendem um cheiro de coisa antiga; lá dentro o ar é quase rarefeito. As janelas estão fechadas e lacradas com madeiras – alguém quis vendá-la. Minúsculas fibras de poeira flutuam vagamente e refletem à luz do sol. O assoalho está empoeirado. Alguém entra em passos tímidos e curiosos. Espero que se revele: sou eu ali. Assusto-me. Percebo um redemoinho de poeira subir acima do meu allstar emboçado pela terra úmida por onde passei. Intimidado, enfrento as aparências tão pouco convidativas da casa. Procuro me familiarizar assim mesmo; percorro o olhar por todos os cantos; não há portas, mas percebo entradas para outras salas. Afinal, descubro que não há nada em todas elas, em todas as salas. Tenho dúvidas; por que trancafiá-la? Ou vendá-la? Por que abandoná-la? Quais os segredos que ela encerra? São os meus.

Me sinto só, longe da civilização. É como a casinha da árvore da nossa infância, nela eu podia contar meus segredos, podia sonhar, pensar, refletir em paz – longe de tudo que me desagradava, longe da minha família, da minha própria realidade, principalmente quando tudo isso me aborrecia. E de lá, eu podia contemplar e sentir. Aqui me sinto livre, livre de convenções, de regras, de moralismos empáficos. É um lugar estranho, mas não tenho medo. Pelo contrário, me sinto protegido. Aqui posso revisar minhas ideias, posso me auto-avaliar. Hoje, não tenho mais vontade de contemplar, minhas sensações agora se satisfazem a partir de outros sentidos, do tato principalmente. Agora eu necessito de ações, meu corpo se adaptou à velocidade do nosso século, à precisão e à objetividade que a tecnologia proporciona. Mas a atmosfera sombria e desértica me acolhe.

Estranho. Tenho vontade de cantar.

Eu? Sou eu mesmo ali?

Senti em milésimos vívidos o que eu chamaria de liberdade. Não saberia dizer que sensação é essa, acho que não se explica a liberdade. Da História, ouvi dizer que se lutou muito por ela. Não me importo com isso. Seria insincero se isso realmente me chamasse atenção, ou se por isso eu lutaria ou morreria. Acho que sou, ou ele é, um adolescente do nosso século, tratado sob as convenções do individualismo. Eu não sei bem. Nem quem eu sou. Nem se sou. Senti, então, minha respiração límpida. Na verdade, tive vontade de respirar, não com o desespero de quem se afoga, mas exultante, como quem é acometido por um lapso de consciência de vida.

Voltaria outras vezes àquela casa.

2. Eu quis dizer: me sinto purificado depois de ser corrompido. Poucos aceitariam essa ideia. Não sei se a aceitei, isso não pode se resumir a um assentimento voluntário, é algo mais volitivo, mais instintivo. Não acredito nisso também. Criei a noção básica de que meus desejos e minhas necessidades são consequências de um condicionamento processual que envolve tanto a cultura quanto a família. E quando falo disso, quero enfatizar bem a noção de valores morais e éticos que nos são incutidos durante todo o processo de formação individual. Mas, em circunstâncias tão curiosas e tão ricas em possibilidades, não me proponho a discutir isso. A verdade é que sou a bruta definição de um egoísta: faço o que me agrada, faço o que quero fazer. Um hedonista. Mas eu me desafio sempre que posso.

“O que você sentiu?”. “Não sei”. Não sei. Ela não soube dizer. Não sei, não sei. É o espírito da incomunicabilidade que assola nosso século. Perguntei corajosamente, inescrupulosamente. Ela me respondeu com uma inocência que prescinde de escrúpulos e de coragem. Respiramos o mesmo ar, nos tocamos, eu a penetro e nossa alma se funde – mas ainda me pergunto que direito tenho sobre ela. Ela mesma não saberia responder. Ficamos calados, incomunicáveis, inexpressíveis. Tento não modificar os trejeitos do meu rosto, porque ela pode confundi-lo, enganar-se quanto ao que sinto. Ela também teme que eu me engane, acho que ela pretende assegurar, por mim, o amor que sinto por ela. Acho que ela quer me dar certezas. Muitos achismos não identificam nem de longe indicam certezas. Enquanto isso, não sabemos de muita coisa. Eu acho. E só. A certeza, para nós, é imponderável, é líquida e de minhas mãos ela escapa. É como se fôssemos personagens de um livro, de um conto; nossas verdades e a verossimilhança em nós assimiladas é uma construção poética da criatividade do autor. Em algum momento eu devo ter pensado em fugir, em escapar-lhe à mão, tornar-me o que eu pretendo ser, contruir-me conforme minhas próprias pretensões, como se eu fosse vivo. Em algum momento, meu autor se viu aflito por perder as rédeas do lápis que me contornava e me construía em palavras. Então, ele se viu forçado a rabiscar, a apagar parágrafos e parágrafos que me revelavam de maneira errônea, escritas conforme uma implosão da inconsciência, sem, no entanto, sua permissão. Este momento é epifânico: descobrir que minha vida é uma implosão criativa e que não posso escapar às determinações da verossimilhança, isso tudo me impressiona. Um autor escreve, cria seu mundo, elabora suas verdades e suas determinações que, mesmo não escapando ao mundo real e concreto, delimita a ilusão em que os personagens vivem. Posso ver onde terminam as fronteiras entre a realidade e a ficção, mas não posso transpô-las. Por isso, me sinto impelido por minhas emoções, por minhas ideias etc. Por isso mesmo, tento transgredi-las, contorná-las se possível. Por isso me desafio, desafio o que sinto, o que é de mim. Ora, se sou criação de um autor e suas verdades não me agradam, então quero descobrir novas verdades em novos autores. Quero me escrever, com minhas próprias mãos, se possível.

3. Fecho os olhos. Abro-os.

Aquele ali sou eu? Ainda sou eu ali?

Aquele lá, aquele não sou eu. Eu não estou aqui.

Prefiro não perguntar de novo. Sinto-me livre agora e gostaria de continuar. Minhas ideias saltitam na página e eu posso espalhar as palavras sem muito esforço para organizá-las. Elas dizem por si. Sou um precipitado caótico de ideias e emoções. Elas dizem por mim, elas me compõem, me contornam, me delineiam, me modelam, me impelem, numa batalha infinita entre razão e emoção, entre pensamentos dicotômicos, entre dilemas, entre maniqueísmos e inapeláveis desafios morais que enganam a lógica das dialéticas. Não sei se posso dizer que aquele ali sou eu. Se sou este, se penso como este, como poderia ser aquele outro? Eu não estou aqui.

Radiohead toca no mp4. Ela não quer falar, nem quer escutar, está absorta. Nos ouvidos, o fone deixa zumbir alguns versos, ressaltados pelo silêncio da casa vazia. Levanto-me, percorro a casa e o rangir do assoalho velho segue meus passos. Tiramos as madeiras das janelas; achei que sentiria menos a melancolia que transbordava na densidade e na escuridão daquela casa. Enganei-me. As luzes do sol só realçaram, num contraste intenso, a atmosfera solitária, melancolicamente angustiante e sombria que pairava ali. Agora eu entendo que a paisagem, como eu a vejo, nem sempre reflete as emoções do observador ou a elas corresponde. Chega de impressionismos desbaratados. Sinto-me mais real agora que sei disso. Antes eu me sentia como se fibras me conectassem a uma página polvilhada de palavras, na qual tudo se aglutinava e imiscuia, criando formas borradas e inteligíveis. Como se eu não pudesse me desprender das determinações do ambiente, ou da vontade de alguém. Agora posso me mover, me deslocar, agora os cenários diante de mim não me perseguem, simplesmente me abrigam. Agora não sinto que sou feito de símbolos, apesar de saber que isso não é verdade.

Infelizmente, estamos inacessíveis, com medo, com receio de errarmos em nossas palavras. É a dificuldade de comunicação do nosso tempo, apesar de todo o aparato tecnológico de alto grau de que dispomos e que nos conecta a todos os cantos do mundo. As relações humanas e os vínculos afetivos, de âmbitos metafísicos e sensitivos, já não atraem mais. Ela está deitada num colchão velho que trouxemos para nosso novo lar. Não sei bem como me sinto, mas reluto contra meus ciúmes. Penso na afeição que tenho por ela e na calmaria que ela suscita em mim. Volto à sala onde está o colchão e a vejo com lágrimas nos olhos. A música sempre desencadeia sensações tremendamente fortes para fazê-la expelir algumas lágrimas. Não acho que ela seja sensível, mas é a música, a força da música. É o movimento, o bailar das ondas sonoras, a harmonia dos instrumentos, as emoções que compõem a melodia, que a descrevem, que a contornam, que a delineiam, é a articulação da letra ao composto sonoro, a vontade inexorável e a tentativa frustrada de dar vazão à transbordante angústia de viver. É a música. Ela se apropria da música e de todos os sentimentos que esta reproduz do compositor, e os transforma nos seus. Por isso as lágrimas nos olhos.

“Você sabe que eu te amo”. “Eu te amo” é uma expressão que parece não nos encantar mais. Parece, agora, desmistificada. Tão banalizada, batida e rebatida. Não sei como chegamos a esse ponto, mas o amor se esvai com o tempo. Poderíamos encher de areia uma ampulheta e virá-la até que o último grão caísse e, então, chamar isso de amor. A diferença, incontestável por sinal, é que não sabemos de que tamanho é a ampulheta e o quanto de areia é preenchida quando começamos a amar.

Palavras. Como podem dizer tanto?

Minhas verdades.

Eu me pus a sua frente, bem diante dos seus olhos e disse: “você sabe que eu te amo”. Provavelmente ela não escutou, mas deve ter lido nos meus lábios ou captado por algum sexto sentido fenomenal. Ela sorriu, então. Ela me segurou pela nuca e me beijou. Beijamo-nos. Sempre gostei do seu beijo, é cauteloso, é suave e delicado – eu tento seguir o mesmo movimento, com a mesma delicadeza. Ela tem certa habilidade, uma habilidade inerente. Afinal, acho que consigo.

Nós transamos naquela tarde.

Trouxemos tinta naquele dia; iríamos ver o que fazer depois da faxina. Eu sempre gostei de cores, mas nunca soube aproveitá-las, ou melhor, organizá-las, combiná-las. Alguns artistas fazem bem isso e, quando vejo suas obras, sinto que, em algum lugar, essas tintas escoam e formam um riacho colorido que ligam o mundo ilusório concebido pelo artista ao nosso mundo convenientemente real. Não sou imediatamente absorvido, mas sei que posso adentrar nelas enquanto nado em algum sonho perdido. Pintar paredes não se compara à arte de pintar telas, é claro. Acho que tentávamos mudar aquele clima.

4. Mas palavras não dizem tudo.

Não poderia me descrever com palavras, me definir como tal, pois há verdade na minha existência verossimilhante. São palavras que compõem minha forma, e, no entanto, minha dor não seria maior se fossem moléculas e células. O que eu digo é que não quero me definir, me delinear – dou carta branca à imaginação.

Lá fora chove, algumas gotas colidem no chão, abafadas pela terra que amortece a queda d’água; outras espatifam-se como vidros ou cacos de vidros nas pedras ou no chão de concreto do quintal, ou nas folhas das poucas árvores. Algumas ainda entram pela janela aberta ao meu lado, entram tímidas e algumas se quebram e produzem uma espécie de fumaça d’água. Uma poça se forma no chão, e parte da água escorre em filetes por entre as entranhas retilíneas e labirínticas do assoalho. Vejo as diminutas correntezas seguirem seu caminho, uma vai em frente, outra atalha-se pela direita, outra ainda se perde pela esquerda para se reencontrar logo em frente com a primeira. Cada uma seguindo seu curso, delineada pela irregularidade do chão ou das peças de madeira que fazem o assoalho. É um labirinto simples, afinal. Brinco na diminuta poça d’água, descrevendo com o dedo alguma letra impensada que emerge legível do meu inconsciente. L, desenho. A poça é violada, mas como moléculas obedientes e teimosas que são as da água, a poça recompõe-se, apenas com algumas deformações, em sua forma original.

Algum ruído me trouxera de volta de minha distração. Me virei e a vi: espiava-me. Parecia tímida. Apegada à quina da entrada, ela tinha o rosto encostado na parede. Estava linda, parecia emanar uma delicadeza que diluía o ar sombrio e melancólico daquela sala, daquela tarde chuvosa. Ficou-me a espreitar. A chuva não cessava. Levantei-me e dei alguns passos até ela, mas percebi que não queria que eu me aproximasse. Dei mais alguns passos e ela, como se tentasse fugir timidamente, recuou, adentrando-se na penumbra do quarto. “Não quero que me toque”, disse. Não conseguia raciocinar, nada me estava claro, não conseguia ao menos conjecturar sobre tudo aquilo. Senti-me constrangido. Um medo se apossou de mim. De nós dois.

Medo de nos tocarmos, de flutuarmos, de diluirmos na vida.

Um homem não pode voar porque tem medo de altura.

Não conseguimos nos tocar.

5. Ela ainda não sabia, mas aceitara.

Não consegui me excitar. Não tive ciúmes, mas não consegui me excitar. Algum pudor se traduzia em escrúpulo, ou vice-versa, ou eu estava exaltado demais nessa situação inusitada e completamente inédita para mim. Ela, de costas, curvava-se para alcançá-lo em seu pescoço e abraçá-lo. Ele perdia-se naqueles caminhos, naquelas curvas. Ela inclinava-se voluptuosamente a sua frente, enquanto ele segurava ora em sua cintura ora acariciava seus seios. Ela prometia pecados, transpirava pecados; aquela abundância de secreções, que se misturavam, que escorriam, cheirava a pecado. Alguma forma de paixão inundou a sala, ele não a agredia, faziam sexo, mas não deixavam transparecer o caos e o turbilhão de pensamentos frenéticos e indomáveis dentro da cabeça, nem a tensão do momento. Ele a apalpava e a acariciava como se não quisesse deixar nada escapar de seu tato. Seus sentidos pareciam aguçados. Entregavam-se à volúpia, deixavam os espíritos confluírem-se e se fundiam em alguma outra dimensão. Transcendiam. Eu não parecia estar lá. Tinha a câmera na mão e tentava não perder um detalhe do que faziam, mas me perdia nos pensamentos e nas dúvidas e na memória e na própria imagem na minha frente. Algum impacto delirante me atingira e eu parecia fazer parte do filme que eu mesmo fazia, como se manejasse a câmera automaticamente, como um diretor que conhece o roteiro e sabe o próximo passo, o próximo gesto dos personagens, e capta tudo. Descobri que não havia incongruências entre o que eu via e o que eu captava com a câmera; pareceu-me que eu havia redescoberto o olhar, o ver, o assistir. Descobri que do outro lado, do meu lado, onde eu estava, existia vida que se conectava de alguma forma à cena que eu presenciava. Fui absorvido, como sempre ou quase sempre sou quando algum filme me arrebata. Percebi-me vivo detrás da câmera, diante da imagem; havia uma incongruência ali que me punha em confronto com as idéias e concepções traduzidas pela imagem; eu não tentei relutar, mas acatar as imagens, como espectador e não como crítico. E como espectador fui golpeado pelas surpresas que não atendiam às minhas expectativas. Como se nem ao menos tivesse lido a sinopse. Tentei não deixar transparecer as marcas que me deixavam os golpes. Talvez não o tivesse conseguido, se os personagens do filme não fossem só integrantes de um mundo que só a eles era assimilado e se não estivessem embalados pelo delírio. Uma janela deixava-se transluzir, a tarde recebia os últimos golpes e empurrões e se precipitava, titubeante, em cair. Concentrei-me na câmera e na imagem; mas algo nos ligava por fibras, mesmo que nossas ideias se confrontassem. Ela oscilava e deliberadamente havia se entregado, deixara-se conduzir pelo outro corpo. Era uma dança mística, sensual, e não havia compasso nem ritmo previsível, apenas o movimento mágico dos espíritos que transcendiam. Eu quis transferir esse sensualismo, essa dança, para a imagem, quis que ela fluísse. Movimentei-me com a câmera e tentei entrar naquela harmonia; movimentava-me com fluidez, suavemente, fazendo a câmera oscilar por vários ângulos. Tentei compactuar aquele espírito à imagem. Tudo transpirava sensualismo. Eles se tocavam sem relutância. Foi lindo. E eu tinha me deixado levar. O orgasmo foi explosivo, o ápice. Desabaram, extenuados, e abraçaram-se. Desliguei a câmera, mas o filme ainda não tinha acabado.

Não estávamos realmente constrangidos, mas ele foi embora primeiro. Ficamos eu e ela, cada um em um canto diferente da casa. Ela tinha se enxaguado, mas já estava vestida quando entrei no quarto. Ela esboçou um sorriso, mas senti algo de insincero nele. Não que estivesse constrangida. Talvez quisesse me provar algo, ou desmentir algo. Mas estava feito. Depois de tudo... não sei, talvez tivesse me precipitado ao pensar assim. Eu a beijei – sabia que, de algum modo, ainda nos amávamos. Íamos embora, mas eu parei para observar a casa. A tarde tombara, mas a noite ainda não se tinha acomodado. Não havia fontes luminosas à vista e eu me perguntava de onde vinha aquela luz tênue que pairava sobre o assoalho. Melancólica. Extenuada. Quis acreditar que fosse imanente à casa.

Ela saíra e me esperava do lado de fora. De repente, tive receio em deixar a casa, alguma náusea parecia me consumir ao ver a porta de saída aberta para mim. Lembrei-me de muitos momentos ali, principalmente daquela tarde, de como eles se amavam. Eu me perguntava se tinha os amado de coração. Dei uma última olhada, parecia o quarto escuro e desolador que era a minha existência. A náusea me deixara, mas ainda tinha receio. Pareceu-me que seria minha última vez naquela casa, mas nunca confiei em minha intuição. Algo prendia minha alma, chamava por ela. Mas ela não tinha nome. Eu fui.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Bang Bang, um fime de Andrea Tonacci


Não seria de todo errado dizer que Bang Bang não tem narrativa; poderíamos adotar essa afirmação e a partir dela discorrer sobre sua proposta e seus motivos. É certo que Bang Bang desconstrói a narrativa clássica do cinema, brinca e satiriza a curiosidade do espectador em saber qual desfecho terá a estória, desmistifica o herói enquanto herói e o vilão enquanto vilão etc. Mas a maneira como faz Andrea Tonacci, diretor do filme de 70, vai além da desconstrução e do embaralhamento dos fatos narrativos. Tonacci simplesmente monta, desmonta e remonta parte dessa narrativa. Sim, apenas parte dela, retalhando-a e a discrimando de seu todo, não oferecendo um início nem um desfecho aparentes, mas simplesmente remontando variações em torno de uma situação. Dando tiros às cegas (e não é gratúita a expressão), Tonacci constrói seu cinema, desconstruindo toda noção convencional da coerência do fio narrativo, procurando sempre novas possibilidades estéticas.

Bang Bang, no entanto, não é apenas a desconstrução narrativa de um filme para analisá-lo em sua condição de cinema. Tonacci cria em torno da situação clássica de perseguição, tão recorrente no cinema hollywoodiano (e essa escolha não é à toa), hipóteses várias que correspondem ao universo de possibilidades oferecido pelo cinema. Bandidos esdrúxulos e caricatos, um mocinho que não se vê como herói e a mocinha misteriosa que dança para a câmera, em frente a um plano de fundo ilustrado por elementos essencialmente urbanos: edifícios, construções etc. Aliás, a urbanidade é patente no filme, não só como plano de fundo, ou mesmo como cenário, mas como habitat natural dessas figuras grotescas que perambulam por aí sem objetivo aparente que não botar as garras no mocinho. Os elementos que compõem esse urbanismo exacerbado, a concretude, os mecanismos dos elevadores, amontoado de peças automobilísticas sucateadas, tudo isso realça a imundice, o caos, a exasperação da atmosfera urbana onde habitam os tais personagens dessa estória, que não é propriamente uma estória, já que a força motriz que move o chamado cinema clássico (a trama) condensa todo o filme e não oferece desfecho e muito menos explicação cabível para a perseguição. Tonacci brinca com nossa visão limitada, condicionada pelo cinema clássico, pelas estórias clássicas, de começo, meio e fim.




Próprio ao Cinema Marginal e sua filosofia, "já que não podemos fazer nada, a gente se avacalha e se esculhama", o filme de Tonacci é sujo e maculado por excelência. Esse cenário brutalmente urbano, caótico, sucateado, confere à imagem uma textura bastante exasperada, suja, imunda. É nele que os personagens atuarão (no próprio termo referente a ator, pois eles nem ao menos tentam nos persuadir, disfarçando-se de personagens, porque eles têm consciência do que realmente são: atores), onde a perseguição começará e recomeçará sem nenhum desfecho definitivo. Essa consciência de ator é também um artifício para assegurar a ideia de consciência de uma realidade que cerca a ficção. A câmera não mais se esconde para registrar a ação dos personagens e criar assim uma ficção verossímil suficiente para convencer o espectador. A cena no banheiro, em que o personagem, com máscara de macaco, canta "Eu sonhei que tu estavas tão linda", desfaz toda noção de barreira intransponível entre realidade e ficção. Ao mostrar a câmera, pelo espelho, Tonacci quebra essa barreira e instaura dentro da ficção o aparelho causador de sua própria condição. Em sua busca pelo que pode ser cinema, ele funde realidade e ficção, desmistifica a farsa do ator e joga um balde tinta na quarta parede do cinema, a parede invisível.


Pode-se pensar, a partir de então, que as ações e os olhares dos personagens para a câmera não mais serão dirigidos apenas ao espectador, mas para a própria câmera, posto que agora sua presença física e participativa é reconhecida e admitida e se encontra na mesma dimensão ficcional a que eles pertencem.

A câmera agora faz parte do espaço e de toda uma dimensão ficcional que também a abarca, junto aos personagens. Portanto, a situação de perseguição nem sempre corresponderá ao bandido que corre atrás do mocinho - essa ideia é aqui deturpada; agora não só o bandido persegue o mocinho, como a cãmera (tanto em sua função registrativa como em sua condição física) os persegue. Não que os queira presos (porque muitas vezes são capturados e logo na sequência estão livres de novo), mas a câmera quer registrar a reação por parte dos personagens. Ela os estimula, eles reagem. Numa cena, em que um mágico à Meliés brinca com a composição do quadro, nossos heróis (pois acho que nem ao menos podemos definir quem é herói e vilão neste filme) aparecem e desaparecem, fazendo poses altivas, que confirmem sua posição como herói ou vilão, para, depois, fazer desmoronar essas imagens, tornando-as até cômicas de tão desajeitadas. Quando, por exemplo, na mesma cena do mágico à Meliés, o cego perde seus óculos e começa a procurá-lo, tombando em tudo pelo cenário, e um dos bandidos come sem parar, emporcalhando-se todo.

No entanto, mesmo em suas sequências mais desconexas, ainda se encontra no espaço amostral desse cinema, uma cena de grande carga dramática: a cena em que os bandidos sofrem um acidente. Vemos no quadro, que afasta-se do chão lentamente, um carro em chamas, um homem estirado no chão, os bandidos que, após terem invadido um carro, vão embora, deixando de fora do veículo uma mulher que vinha nele. E, de fundo, uma música triste. Logo após um dos bandidos tenta contar a estória do filme e estabelecer, finalmente, um fio narrativo coerente. O que não acontece. O bandido é então acometido por uma torta na cara, enviada por alguém provavelmente da equipe de filmagem de Tonacci. Ele compreende a mensagem e desiste de continuar a estória.



O filme termina com risadas debochadas dos bastidores, enquanto um dos personagens insiste em cantar "Eu sonhei que tu estavas tão linda", enquanto se veste no banheiro. Parece então que já vimos de tudo no cinema. Talvez.

Bang Bang é a contribuição do Brasil à pesquisa estética que era proposta e realizada em praticamente todo o mundo, com maior vigor nas décadas de 60 e 70. Tonacci vai em busca de um novo cinema, sem fórmulas premeditadas, sem convencionalismos, sem técnicas manjadas, e nos oferece uma visão ousada e inovadora. Quebra antigos conceitos e lança sementes para o florescimento de outros. E assume a impossibilidade de velar a dimensão ficcional do cinema.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Leite, um filme de Semih Kaplanoglu.





Parte 2 de uma trilogia que decorre inversamente a vida do poeta Yusuf, Leite nos propõe uma experiência sensorial não diria nova, mas que é tendência na imagem cinematográfica dos diretores que se inserem na linha do cinema artístico. Um cinema que utiliza recursos naturais da própria paisagem, como a iluminação, Semih rechaça o artificialismo dos recursos comuns próprios do cinema comercial. Ademais, não é um filme difícil de digerir, pela sua beleza paisagística que atrai os olhares contemplativos. No entanto, é um filme que deve se desprender dessa visão superficial (que sobrepõe a imagem à estória) por estar carregado de símbolos em sua narrativa imagética.

Na verdade, me pergunto como metaforizar certos conceitos num cinema que procura aderir às teorias do olhar contemplativo característicos nas obras de diretores como, por exemplo, Tarkovsky. Se Tarkovsky prescinde das metáforas, mesmo que seu cinema seja um artifício poético, onde e como a semiótica poderá identificar e definir os signos de um filme que nasce de um paisagismo exacerbado, ou seja, principalmente do superficialismo da imagem. Se Semih consegue conceber seus próprios signos em suas imagens, então é preciso que eu faça uma revisão no meu olhar cinematográfico. Não é isso, no entanto, uma crítica, mas uma dúvida de um leigo como eu.

Voltando ao filme...

É importante destacar a beleza das imagens realçadas principalmente pelos cenários e pelas cores leitosas bem característicos do filme e que claramente aludem ao título. Como disse, não há iluminação artificial, mas para compor a cena bastam a iluminação natural do cenário, mesmo que não haja, e isso acontecerá em algumas das cenas já no final. O céu é um elemento bem recorrente, mas sempre aparece manchado pelas enormes nuvens esbranquiçadas. Semih prefere os cenários grandiosos, espaçosos, mas não relega de todo os cenários internos, nem prescinde do closer ou do primeiro plano.


A beleza do filme está entranhada, também, na simplicidade de sua narrativa. Para os olhares despretensiosos, o filme parece o registro de um adolescente que deambula aqui e ali, escrevendo poesias e trabalhando para a mãe. Mas a temática adolescência possibilita um universo de temas que se pode explorar e discutir, ou que serve de motivo para dissertações e estudos científicos sobre o assunto. O que, no entanto, descarta essa possibilidade, é a apatia e a inexpressividade do jovem protagonista Yusuf. Personagem, eu diria, atípico, que não encerra características universais presentes na juventude, Yusuf não sai à procura de nada, não se preocupa em se satisfazer fisicamente, ou satisfazer os vícios de sua efervescência hormonal, não questiona nada e não tem grandes pretensões. Na verdade, não parece se preocupar com muita coisa, exceto com sua mãe, que, viúva, se ver apaixonada de novo em determinada parte do filme.

Se Yusuf, portanto, não atende às características do típico jovem em crise existencial ou de identidade, ou se seus hormônios explosivos não o impelem à tentativa de satisfazer prazeres físicos, então ele personifica, nos moldes de uma visão romântica do artista, um poeta errante. Ou seja, Semih traz ao mundo um personagem um tanto metafísico. Se os problemas de Yusuf não são terrenos, ou melhor típicos, então são problemas artísticos que se encerram unicamente na arte. Mas Semih não explora a arte de Yusuf, ele simplesmente o persegue e o registra. A verdade é que Yusuf é um personagem alegórico, sim. É um poeta errante bastante humano e, ao contrário do que eu falei, não se encerra na arte. Talvez isso seja uma peculiaridade característica. Se assim for, Yusuf é um personagem bastante peculiar e traz à tona certas problemáticas do nosso mundo.

Exceto quando sai pra vender leite, a pedido de sua mãe, Yusuf caminha errante por quase todo o filme, sem objetivos nem grandes pretensões, como já disse. Yusuf não procura e, no entanto, sempre encontra alguma coisa, e só por isso é possível identificar e caracterizar o personagem Yusuf. Na primeira vez, encontra uma amiga com quem acaba pegando carona. Depois, encontra o professor a quem pede conselhos sobre suas poesias. Afinal, encontra uma garota por quem demonstra certa simpatia. Em nenhum desses encontros, porém, Yusuf obtém sucesso seja qual for seu objetivo. Com a primeira garota, Semih apresenta uma situação de incomunicabilidade evidente entre os dois personagens. O problema de comunicação, na verdade, está em Yusuf; essa hipótese é sugerida a partir do momento em que a garota, ao atender um telefonema, sai deambulando pelo cenário enquanto conversa longamente no celular; essa mesma hipótese será confirmada no decorrer do filme. Já o encontro com o professor, a ausência de comunicação também é evidente, mas de uma forma muito mais antipática. Yusuf e o professor bebem cerveja num café, sem trocar uma única palavra. Quando se pronunciam, não é para se corresponder, mas para simplesmente pedir outra cerveja. De outra forma, correspondem-se pelas trocas de olhares apáticas ou mesmo incisivas. A cena sofre um corte brusco no exato momento em que os dois conseguem trocar palavras. Já no último episódio, a relação é mais simpática; Yusuf consegue manter uma comunicação estável, até fluente, eu diria, com a nova garota; os dois personagens não parecem se preocupar em procurar algo para dizer. No entanto, essa relação não é duradoura, não mais a encontramos durante a narrativa.


É interessante observar que essa incomunicabilidade não serve unicamente para atestar um problema recorrente na juventude ou na sociedade atual, mas para suscitar a preocupação de se encontrar um silêncio, que hoje é incomum, nessa mesma sociedade. Tomando como voz o próprio Semih, ele nos atenta, em entrevista, que o silêncio em seu filme não é o silêncio absoluto de todas as coisas, mas um silêncio que ressalta o murmúrio da natureza, e ratifico com minhas palavras, que serve como oportunidade para se escutar o que não se diz entre os homens. Não estou sendo aqui naturalista como o filme, apenas analisando uma leitura possível aos meus olhos.

Desse silêncio onde paira o espírito da incomunicabilidade, os planos terão obrigação de nos atentar à paisagem, já que os personagens não nos têm muito a oferecer. Por isso, Semih capta paisagens naturais, na maioria das vezes, ao mesmo tempo em que situa seus personagens no início desse plano. Muitas vezes, os próprios personagens observam essa paisagem junto aos espectadores. Nesse sentido, é um filme bastante contemplativo, apesar de que os personagens estão, quase sempre, à vista, para que não nos esqueçamos de sua estória.
Quanto ao tempo, o filme segue um ritmo um tanto quanto peculiar, apesar de seguir uma tendência artístico-cinematográfica atual, com planos fixos e extensas tomadas. Semih tenta estender o tempo perceptivo com seus planos fixos e demorados, mas quebra esse ritmo com alguns cortes que eu não diria dispensáveis para sua diegese. Em alguns diálogos, principalmente nos que os personagens se situam em espaços diferentes, o corte é bastante recorrente. Essa é uma grande diferença entre Semih e, por exemplo, Tsai Ming-Liang. Este último aproveita os cenários de forma que os cortes sejam completamente descartáveis, mas permitindo aos personagens que interajam entre si ou se comuniquem. Esses cortes, no filme de Semih, conferem uma certa dinamicidade que o filme prescindiria, devido a sua estética e a sua ideia inicial. Mas Semih não se preocupa em seguir parâmetros ou tendências.

Leite é um filme do qual não despontará nenhuma epifania. Mas vale a pena vê-lo, seja pela beleza de sua simplicidade, seja pela simplicidade da própria narrativa ou da própria estória, ou mesmo pela experiência memorialística, mas nesse sentido, será imprescindível ter em mãos os dois outros filmes que completam a trilogia de Yusuf.