segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Paradise Now, um filme de Hany Abu-Assad.



Minha namorada raramente aceita assistir aos filmes que quero ver e é uma proeza minuciosa persuadi-la, no sentido de que eu não tenha de forçá-la com chantagens ou melodraminhas sentimentais, mas de persuadi-la por sua própria vontade (?). Neste último final de semana, assistimos a uma produção palestina, do diretor Hany Abu-Assad, que trata com maiores delineamentos humanizados (do que trataria uma produção hollywoodiana) os personagens de uma trama que aborda um assunto bastante atual: o terrorismo dos homens-bomba. De uma escala de 0 a 10, por incrível que pareça, a nota recebida por ela foi 8. Por complacência ou não, acho que foi sincera.


Bom, indo ao filme, vou apresentar a sinopse para apoiar nela minha crítica pessoal (ou melhor - para não apresentar qualquer indício de pretensão - minhas impressões).



Amigos de infância, os palestinos Khaled (Ali Suliman) e Said (Kais Nashef) são recrutados para realizar um atentado suicida em Tel Aviv. Depois de passar com suas famílias o que teoricamente seria a última noite de suas vidas, sem poder revelar a sua missão, eles são levados à fronteira. A operação não ocorre como o planejado e eles acabam se separando. Distantes um do outro, com bombas escondidas em seus corpos, Khaled e Said devem enfrentar seus destinos e defender suas convicções.



Numa tentativa de concretizar e humanizar os fantasmas que são os homens-bomba cujas identidades são abafadas pelas vítimas dos seus atentados, Abu-Assad constrói para seus personagens duas personalidades com peculiaridades distintas e autenticamente humanas, sem maniqueísmos, nos quais o passado, a família, a cultura, a razão e o próprio sentimentalismo se interagem, se confrontam e se complementam, conduzindo-os em seus passos. Enquanto o número de vítimas se transforma em dados estatísticos nos jornais e na TV, os terroristas, os homens-bomba nem ao menos são vistos como gente. Abstraem-se. É mais ou menos para preencher o vazio, a invisibilidade de identidade desses homens que parte a estória de Paradise Now.


Khaled e Said, já apresentados na sinopse, são apresentados como figuras até comuns em nossa sociedade, desleixadas e espontâneas, sem grandes pretensões, trabalham numa funilaria e no fim da tarde fumam em seu narguile enquanto, do alto da montanha, observam a cidade. Toda essa despretensão, essa falta de disciplina, demonstra qualquer coisa de afastamento religioso ou político. Numa cena, os protagonistas, em desavença com o chefe, quebram o pára-choque do carro de um cliente, porém, tanto eles quanto o chefe parecem acostumados com as vicissitudes, o que não acarreta em nenhuma decisão drástica – no final, ninguém é despedido.


E quanto mais afastados da religião ou da política, mais próximos estão da nossa cultura – é a impressão que tenho. Essa impressão é reforçada pela estética convencional norte-americana estruturada no filme, de sequências rápidas, diálogos rápidos, de enquadramentos e ângulos tipicamente hollywoodianos. Mas não quero justificar minha impressão me apoiando em técnicas, já que prefiro não criticar as produções norte-americanas, até pelo contrário, algumas até me atraem. Só que é irônico encontrar esse tipo de estrutura num filme que conserva certa aversão aos costumes norte-americanos.


No entanto, a semelhança de produções não se limita à técnica nem às personalidades dos protagonistas, mas se estende à dramatização que por vezes se deixa cair nos deslizes de diálogos manjados concatenados a expressões que deixam transparecer certo melodrama. É aí que perdem destaque para mim, apesar de que eu não teria qualquer outra idéia de como poderiam me persuadir outros personagens num mesmo contexto, numa mesma estória. Essa dramatização típica emana um ar de previsibilidade imprevisível – isso mesmo. É claro que o filme não perderia prestígio, para mim, por isso, já que também respeito esse modo de expressão; e é claro também que o filme não se tornaria ruim por isso, para ninguém, já que a sensação de previsibilidade é tão manjada que já existem diversos artifícios para contorná-la – e é claro – também - que essa sensação de previsibilidade é exposta aqui como simbologia. De modo que agora me sinto obrigado a expressar meu enorme respeito pelo filme, pelos assuntos que aborda, e minha admiração, também, por essa obra – já que eu gostei.


Novamente me escusando de qualquer pretensão, expresso aqui uma análise pessoal, tida pelos meus próprios sentidos, por assim dizer, leigos, desprovido até de conhecimentos técnicos mais profundos. Mas, convenhamos, concordemos – assistamos ao filme. Isso vale como recomendação. E continuemos.


Khaled e Said são convocados para realizar um plano que vinha sendo “estudado há 2 anos e chegou a hora de pô-lo em prática”. É aí que começamos a conhecer as relações político-religiosas dos protagonistas e suas convicções à cerca do assunto. E é nos próximos momentos que se configurará uma complexa rede de minuciosidades que nos apresentará ora sutilmente, ora expressamente as convicções do próprio autor. Jamal, amigo de Said há algum tempo, é quem dá a ele a notícia de que fora convocado. No primeiro momento, senti algo mais profundo nas intenções de Jamal, no entanto, no decorrer das sequências, ele se mostra debilitado em suas ideologias, quase vazio, sem argumentos, e que tenta delicadamente convencer Said, ou melhor, mantê-lo convicto de sua decisão e de Alá, também.


O momento mais constrangedor, para mim, que revela toda uma falta de pretensão, organização, ou a falta de uma sólida base racional, e que revela também, além do desinteresse, um certo desrespeito com os escolhidos para a “missão”, é quando Khaled, filmado pelos correligionários em seu discurso de “despedida”, no qual explicita a razão de sua conduta, é avisado que a câmera não estava gravando por alguma falha. Exatamente nesse ponto, pensei comigo: não há mais convicção, não há entusiasmo, eles não sabem nem ao menos porque agem assim. É a prova cabal de que o conflito e toda a causa foram banalizados não só para a sociedade ocidental, ou ocidentalizada, mas até mesmo para eles, oprimidos e reacionários. Após todo o discurso que Khaled lê num papel, o aviso, dado inclusive descompromissadamente pelo rapaz que filmava, revela esse desacordo com ideologias tão fortes e tão perigosas.


Afinal, os protagonistas passam pelas vicissitudes da trama e não há nada demais que eu queira comentar sobre isso. Aliás, tenho sim. Diante da sagrada missão, escondido por um espesso manto de medo (do divino e do humano), Said tenta disfarçar a incerteza da existência do Paraíso e manter sólidas suas convicções. Desconfia, mas não quer desconfiar. E se deixa ir na estória como se usasse a luta contra o medo como desculpa para suas incertezas. É como lutar contra a negação do divino. Porém, isso não se mostra tão visível, mas aparente, de forma cautelosa, escamoteado nas entrelinhas das perguntas e das afirmações.


Mas há algo realmente interessante que realça bem a contradição entre os dois povos que ocupam a região. Enquanto a cidade dos protagonistas, em alguma parte da região da Cisjordânia, apresenta-se com todas as estruturas de uma cidade de subúrbio, marginal, quase uma favela do Rio de Janeiro, de ruas de terra, sulcadas, esburacadas, com casas decrépitas, dispostas em morros e mais morros, Tel Aviv, cidade israelense, tem seus prédios suntuosos, suas praias bordadas por orlas matematicamente estruturadas, onde passeiam a gente, os turistas, num ar de contentamento e indiferença. Nessa parte, vê-se também a diferença cultural, a divergência no modo de vestir, inclusive com um plano que enquadra uma garota de biquíni e toda a visibilidade do seu corpo. Essa cena se passa já no final, quando, de alguma maneira, a trama consolida as convicções de um e dissolve as de outro, e nos permite observar a ação de suas decisões.


Recomendo, sim, esse filme, até para que seja possível que se admita uma outra visão sobre o assunto, que ao menos a considere para debater com mais precisão esse tema tão unânime na opinião pública. E já que não estamos discutindo originalidade artística, nem construção estética, desconsiderem minhas considerações sobre a técnica e suas influências no total cinematográfico. E eu sei que estou errado quanto a isso também.


Um comentário:

nando disse...

Rapaz, demorou pra cair a ficha aqui quando vi o nome Cytherea por lá (rsrsrs). Mas eu me acostumo...

E então, já vi esse filme sim! É lindo! Faz tempo, não me lembro de detalhes, mas guardo com força o sabor deliciosamente amargo do final, com aquele zoom no olhar do ator dentro de um coletivo. Isso mesmo: previsibilidade imprevisível! Bom, muito bom.

Outra coisa que me chamou atenção foi um diálogo que um deles tem com uma mulher, sobre cinema. Puxa, não me lembro de tudo, mas acho que um deles nunca tinha ido ao cinema não é? Se não me engano, esse breve diálogo pode funcionar como um centro-motor de todo o filme se quisermos analisá-lo nessa perspectiva de diálogos com cinemas outros que não sejam daquele estranho Oriente Médio, lugar que sofre de uma espécie de ausência de memória cinematográfica. Vale lembrar que esse foi oficialmente o primeiro filme produzido em território palestino, o que já favorece todo esse diálogo com cinemas externos, hegemônicos ou não.

Enfim, seu post também ficou lindo. Que venham mais!