domingo, 12 de fevereiro de 2012

hoje encontrei renato sereno. parecia um morto a quem esqueceram de enterrar. me perguntou alheio em que ano estávamos. - 2012. feliz ano novo, à propósito. percebi que desenhava labirintos numa folha de papel, e eu perguntei para que serviam. respondeu que eram labirintos cerebrais, e pensei em Spider, de Cronenberg, que também construía labirintos cerebrais, mas com barbantes. não servem pra nad...a, então? perguntei se conhecia os personagens de beckett. - não. - são personagens que frequentemente partem de nenhum lugar a lugar nenhum. é como desenhar labirintos numa folha de papel. nos despedimos e ele seguiu a pé. parecia carregar consigo toda a idade da terra, e eu tive a impressão de que não estávamos em 2012, que ele bem podia ser um personagem de beckett, e que ia atrás de lugares nenhuns. também pensei que um dia ainda nos encontraríamos num hospício, eu, ele, molloy, malone, spider, bartleby, o diabo do capitão ahab e o louco do espinheiro. todos fumando cigarros, chupando seixos ou inventando labirintos cerebrais.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

conversas com renato sereno.

tentando dar algum destino a estas reflexões que, sem rumo, acabam como lixo eletrônico no fluxo de atualizações do facebook, resolvi assentar-lhes um lugarzinho pacato neste blog deserdado:


1. meus livros têm o péssimo hábito de me desaparecerem do quarto. disse isso a renato sereno hoje mais cedo. me respondeu que por não ter o costume de ler desconhecia os hábitos secretos dos livros. mas me recomendou apropriadamente uma arrumação no quarto, pois assim não correria o risco de extrapolar os limites da razão, evitando a suposição de inconvenientes fantásticos, como duendes, passes de mágica, bruxaria e coisas de natureza esotérica. tive de concordar, mas quase não resisto à vontade de lhe dizer que ele mesmo não passava de um produto da minha imaginação, ou da loucura (como gostam os psiquiatras e iluministas).

2. hoje, tomava café com renato sereno, quando começou a chover forte do lado de fora. onde estávamos, podíamos ouvir a surda queda d'água nos telhados do estabelecimento, o fluxo que escorria pelas calhas, formando magras cachoeiras nas extremidades. ainda não tínhamos dito nada um ao outro, exceto um comentário discreto sobre a previsão do tempo. nada mais, nenhum cumprimento. um velho, ao nosso lado, pelos grisalhos espalhados por toda cara, disse, alheado e para ninguém: "êta, vai chover!". comentário que me surpreendeu bastante, mas não tanto a renato, que está sempre alheio ao mundo e indiferente às filosofias mundanas. pensei, para além da obviedade dos fatos: ora, chove, como vai chover? e lembrei instantaneamente um trecho de enrique vila-matas contido num bloquinho de notas meu que coleciona comentários famosos sobre o tempo. dizia algo como: "sempre que chove é uma coisa que acontece no passado - creio que um poeta argentino disse isso". contei a renato sereno tudo isso, mas não acho que deu importância. disse apenas que estávamos diante de um louco. mas que o louco não estava menos errado que o tal poeta, afinal. e eu conclui: chover é algo no porvir, que já passou. é qualquer coisa da teoria de bergson. portanto, não chove nunca. ora, chovia, mas não abri meu guarda-chuva ao ir embora.

3. hoje tive uma experiência no tempo. renato sereno diz que não. assim devem concordar Amanda Beça e Alan Tonello, que testemunharam o acontecimnento banal e não souberam perceber a fançanha cósmica inextricável que nos concebeu o universo. estava eu na parada de onibus e esperava cdu/ bv / caxangá, que já tinha visto mais atrás, numa fila de carros e outros ônibus, quando me virei e vi amanda e alan, acenando. ponderei se deveria me aproximar e cumprimentá-los, já que logo mais subiria no ônibus, que se aproximava lentamente por causa do congestionamento. decidi ir até eles. a experiência, invisível mas inquestionável, se deu a partir desse ato banal, durante minha caminhada. aqueles passos não me conduziram somente através da calçada, mas através do tempo. quando cheguei, nos cumprimentandos e, tendo perguntando que ônibus eu pegaria, respondi cdu... ao que me disseram: 'olha aí, rapaz, do teu lado'. impossível! pensei eu. desmentiu-me o fato, mas negligenciei a razão: me nego a assumir minha leseira e displicência: digo que não foi só um deslocamento no espaço, foi sobretudo um deslocamento no tempo! quem negará?

4. incipiente crise de agorafobia em atravessar largas avenidas movimentadas, escassa habilidade em me desvencilhar de vários problemas simultâneos, insegurança pessoal e profissional, baixa auto-estima, impasses literários e frequentes bloqueios criativos, cinefilia, bibliofilia, masturbação e masturbação intelectual que me encerram cada vez mais num estado de solipisismo agudo, desejos frustrados, ...crises excruciantes de ansiedade, a situação duvidosa do sport na competição, perspectivas futuras para arte e cultura em geral, últimas decisões políticas, crise epistemológica das ciências, quantidade cada vez maior de leituras bíblicas e de auto-ajuda em ônibus, são estresses e inconvenientes que me deprimem e minam minhas relações sociais e afetivas. tudo isso desabafei a renato sereno hoje mais cedo, e conjecturei que tais problemas talvez justificassem minhas conversas falseadas com seres imaginários. recomendou qualquer terapia; ou que visitasse um psicanalista. respondi que não, que desconfiava dos psicanalistas. são sociopatas formados em universidade, conclui.

5. o ônibus demorava, e eu conversava com renato sereno na parada. contava a ele sobre o sonho do dia anterior, um desses sonhos em que você acorda e se pergunta se realmente aconteceu ou não. acontece frequentemente comigo. mas o que me incomodava não era a dúvida e a posterior certificação do que não era fato, e sim sobre do que se tratava o sonho. sonhara que tinha telefonado pra alguém pra confirmar qualquer coisa, porque na noite passada fui dormir com essa obrigação e portanto tinha me demorado pensando nisso. disse a renato que odeio falar no telefone porque nunca sei bem o que fazer, nunca sei o que dizer primeiro, se cumprimento, se me anuncio, se espero primeiro um alô pra depois me pronunciar. mas o que mais me incomoda é o inconveniente de me identificar, 'sou eu, renan'. perguntei a renato se não sentia o mesmo, se não achava estranho dizer: "sou eu, renato". com sua negativa, me pus a me justificar. quem sou eu e que propriedade tenho para me identificar como renan? quem é renan? um nome basta para compreendê-lo, as palavras de nosso vocabulário impreciso? como posso ter tanta certeza de que eu sou renan, ou vice-versa? ou se não fui dormir renan e acordei outro, sei lá, álvaro, josé, ou mesmo renato. nessas horas me cai a ficha e eu passo em revisão tudo que fui, tudo que penso que sou e tudo que pretendo ser. é uma dessas perguntas que a gente faz, sentado na varanda, numa noite solitária de lua cheia e amarelada (o cenário romântico é indispensável pr'esse tipo de questão filosófica). quem pode me garantir e garantir a si mesmo de que, do outro lado da linha, sou eu, renan, ou aquele, renan, que falo, ou fala? posso muito bem responder, e já tive vontade de fazê-lo, 'sou eu, mariana'. e você perguntaria, assim como renato perguntou: quem é mariana? e eu respondo: quem sou eu? uma pergunta equivale a outra. afinal, sou o quê? um preciptado de ideias que faço de mim e de opiniões dos outros? (é inevitável a alusão a Fernando Pessoa). um pêndulo ciclotímico de estados psíquicos e de humor? vai saber. um dia, eu, um dia, aquele, e assim por diante. e então renato me respondeu, sorrindo: 'você não existe'. o que me intrigou bastante porque, se ele não existe, eu que o inventei; mas se sua afirmação procede, e eu não existo, sou uma invenção dele, que por sua vez é uma invenção minha. e não faltaria aqui a alusão às ruínas circulares e seus personagens sonhados de sonhos sonhados de outros sonhos e assim por diante. calamo-nos. refletia sobre isso quando o ônibus chegou. o cobrador se aprontou logo em dizer: 'demorou pq tá tendo show no marco zero'. eu fui embora e não me despedi de renato.

domingo, 7 de agosto de 2011

Moonwalkman (ou A história do discurso ausente)

But what matter whether I was born or not, have lived or not, am dead or merely dying, I shall go on doing as I have always done, not knowing what it is I do, nor who I am, nor where I am, nor if I am. Yes, a little creature, I shall try and make a little creature, to hold in my arms, a little creature in my image, no matter what I say. And seeing what a poor thing I have made, or how like myself, I shall eat it. Then be alone a long time, unhappy, not knowing what my prayer should be nor to whom.


(Malone dies, Samuel Beckett)

Conta-se que quando veio ao mundo, não se incomodou em chorar. Viu aquele clarão inédito e indefinido, as sombras que mal se conformavam aos contornos, aqueles corpos estranhos que de repente começaram a fazer ruídos, e não sentiu deslumbramento. Não riu e só chorou quando o enfermeiro lhe despertou as lágrimas com um leve tapinha na bunda. Conta-se ainda que em sua infância plantava-se no quarto e olhava o teto, o ventilador que girava e fazia a sombra das hélices dançarem, passava o dia ensimesmado e não havia quem o tirasse daquele estado de letargia, não havia quem lhe chamasse atenção, e só despertava quando os pais reclamavam a tarefa de casa. Não deu trabalho, não era curioso e carecia de imaginação para traquinagem. Tinha amigos, brincava na rua, não era afeito a corridas e costumava ser o primeiro desistir da brincadeira e dos jogos. Voltava para casa e ninguém insistia que ficasse, habituados que estavam àquele espírito inerte e sedentário. Não o assustava Deus, a religião, os espíritos malvados, as estórias de terror, o desconhecido, a velocidade dos carros, o reflexo no espelho, as notícias de jornais. Também não tinha medo de dormir fora de casa, na casa dos amiguinhos, mas é que não o apetecia, preferia não fazê-lo. Não se sabe quantas vezes se apaixonou, nem quantas namoradinhas teve enquanto criança, mas conta-se que invadia a casa do vizinho, ele, outro pirralho e a amiguinha, e cada um beijava a garotinha com toda inocência que se permite conceder a essa idade primeira. Cresceu e não colecionou muitas histórias, talvez não pelo espírito desdenhoso de aventuras, apático ao mundo, como se pensa por aí – e não se pensa de todo errado, pois carecia mesmo de curiosidade –, mas por discrição e sutileza.

Um caderninho marrom, de capa dura, envelhecido por estilo e não pelo tempo, guardava escritos seus. Não há quem tenha se aventurado em páginas tão curiosas e voltado para contá-las. Mitificaram-nas então. Mas conta-se que eram escritos inconclusos, versos inacabados, não encadeados, não coordenados, diário pessoal da necessidade mundana de registrar cada segredo, cada pequeno detalhe, cada pequena aventura, cada ilógica reflexão. Não fazia nada, de onde se conclui que não registrava aventuras; observava, mas instado a descrever o que via, não via nada – tinha os olhos abertos, mas não via nada; e se não via nada, pensava, refletia, ensimesmado, não que aspirasse ao título de filósofo, mas pela inevitabilidade do ato involuntário. E, seja por discrição ou preguiça, jamais participava a ninguém o que se lhe passava na cabeça. Seu caderninho marrom, entretanto, sempre em mãos, sempre a postos, enquanto criança. Na sala de aula, metia-se em devaneios, abstraia-se; passado algum tempo, abria o caderno e rabiscava segredos e mistérios inauditos de sua imaginação infértil. O que se escrevia, no entanto, é uma incógnita. Conta-se, aqueles que passaram os olhos por cima, que se viam rabiscos, traços, linhas curvilíneas que não formavam desenho algum, eram apenas formas abstratas, traços que percorriam e contornavam o vazio do seu pensamento. Outros contam ter visto versos e palavras espalhados por toda a página, não por ideal concretista, mas pela distração da mão que escrevia, da cabeça flutuante, dos olhos perdidos por aí. As palavras, no entanto, não se liam, seja por não se reconhecer a caligrafia, seja por não encontrarem significado; palavras que, se existiam ou não, não se sabe, eram crianças e guardavam escasso vocabulário. Contam que juntava as letras, aleatoriamente, consoantes e consoantes, cadeias de vogais, não importava, de modo que não formavam palavra alguma, nem fonema, nada que se pudesse ler em voz alta. Mas podiam jurar que, por trás daquelas incógnitas palavras, ressoava a história do universo, uma história inaudita, fantástica, infinita, e só aquele que se despojasse das bitolas e das limitações da nossa língua conseguiria proferir tais palavras.

A história que aqui se narra também não se pode contar, a menos que aceitemos suas incontornáveis limitações, porque não tem fim nem começo, ao contrário do que indica o ponto final. As palavras parecem ter o incrível dom de reverberar para além das páginas, se reformulando e dando novos desdobramentos à história. Mas nosso inigualável herói, Renato Sereno, prazer, é bom apresentá-lo devidamente, é só um ponto na História do homem, é um trajeto circular e, portanto, um caminho que parte de lugar algum a nenhum lugar, uma paisagem que se repete, ou não se move. Renato Sereno é uma projeção cinematográfica, um rolo posto para girar eternamente na moviola e cujas extremidades foram coladas entre si. Como no cinema primeiro, a fascinação pelo movimento sutil das coisas, pela projeção e reprodução do tempo. Renato Sereno não faz parte de um tempo que se repete, mas um tempo que se desloca do tempo dos homens e se torna eterno pela infinitude do círculo. Tal história fantástica não poderia ser contada porque a necessidade a dispensa e porque a língua não a compreende. Seriam necessárias as palavras inventadas pelo próprio Renato Sereno para contarmos sua história, de onde se conclui que só ele poderia contá-la e, para isso, seria preciso que ele mesmo se inventasse, como uma mão que se escreve, uma compressão enérgica, uma implosão do universo, um big bang humano, ou de palavras. E é bom advertir: não se pode acreditar na história de Renato Sereno, porque ela só se sustenta através das palavras, que, no entanto, são frágeis e limitadas, faltam com a verdade e invalidam, por conseguinte, o que elas mesmas contam. Portanto, não se pode acreditar nas palavras, mas no que elas se desdobram nos olhos de quem lê, no que reverbera, no que cresce na alma. Esta história se escreve por si só, é Renato Sereno quem a escreve, as palavras irrompem e não há quem me desminta minha própria história.

Não se pode contar a história de Renato Sereno porque sua história é a história das coisas, de sua geometria, de sua ontologia, do espaço em expansão, da ilusão da perspectiva, da disposição dos objetos no espaço, o que se projeta para os olhos, ou o que é projetado pelos olhos. O que se pode contar de Renato Sereno é que ele descansava na pracinha perto de sua casa e se punha a observar as coisas, intrigando-se com a disposição triangular dos postes espalhados pelo local para se decepcionar logo após concluir a impossibilidade de eclipsar a luz de um deles pelo outro através da perspectiva. Por mais que perambulasse de um lugar a outro, as luzes nunca obstruíam as outras, nunca se alinhavam ao eixo dos dois olhos. Pode-se explicar sua causa através de desenhos e explicações geométricas, pela insuficiência do tamanho de Renato Sereno comparado ao do poste, mas basta dizer, sem deixar de ostentar certo teor filosófico e sem dispensar a matemática e as leis insubstituíveis de Newton, que os dois olhos não eram um só, não ocupavam o mesmo espaço, ainda que partilhassem a mesma cabeça.

E entre as crianças que corriam e brincavam, saltitavam, os gritinhos agudos de choro, de riso ou de raiva, entre as bolinhas de sabão que piruetavam ao sabor do vento, sob as luzes do poste e a lua que nascia no horizonte, amarela, cercada por uma aura dourada, quase mística, e um mar que insistia no seu encontro com as pedras, com a terra, que ressoava um rumor antigo, muito antigo, que vinha desde milhões de anos atrás, Renato sentava na praça, observava os postes, o espírito inerte, os olhos perdidos, devaneados, a carência de curiosidade e a negação de toda poesia que inevitavelmente aludia toda essa paisagem, todas essas imagens. Renato não era poeta, nem poderia sê-lo.

Também não é errado dizer que a história de Renato Sereno pode ser substituída pela história de sua biologia, de sua anatomia, pelo diagnóstico médico e pelo fluxograma. Pode-se falar dos seus batimentos cardíacos, mas não por que e por quem seu coração bate; não se pode falar dos seus sentimentos porque, seja por sua discrição, ou apatia, desconhecemo-los. Seu sangue ferve por uma troca natural de calor com o ambiente, ou porque seu corpo reconhece a invasão de corpos estranhos, mas não porque está com raiva ou nervoso. De Renato Sereno não podemos falar com metáforas. E de seu nome, apenas que seus pais escolheram por obra do acaso, e, como todo bom acaso, não se explica nem se calcula.

O leitor, no intuito de descobrir mais sobre Renato Sereno, vê-se no direito, concedido por mim, é claro, de fazer-lhe algumas perguntas, às quais me antecipo desde já e evito assim, num gesto afoito e pretensioso mas de boa vontade, o incômodo póstumo:

- Religião?

- Não sei.

- Não tem religião?

- Católico, eu acho. Nunca pensei nisso.

- Seus pais são católicos?

- Sim. Não praticantes.

- Acredita em Deus?

- Nunca parei pra pensar.

- O que acha de Deus, do Paraíso, do Juízo Final, da vida após a morte?

- Nunca parei pra pensar sobre essas coisas.

- Na morte, já pensou na morte?

- Não me lembro.

- O que acha da morte?

- Não sei.

- Já pensou em suicídio?

- Não.

- O que pensa sobre acabar com a própria vida, com os sofrimentos, com as dores, se antecipar ao destino?

- Não sei. Parece interessante.

- O que acha da vida?

- Não sei se entendo suas perguntas.

- Viver, o que acha de viver? Andar por aí, ver TV, ter amigos, jogar futebol nos sábados à tarde, se casar com uma mulher, ter filhos, ir à igreja nos domingos, talvez frequentar boates noturnas, ou prostíbulos, acordar todo dia e se olhar no espelho, arrumar um trabalho, sustentar a família... essas coisas. O que pensa disso tudo?

- Parece cansativo.

- Mas não é mais ou menos assim que você vive seus dias?

- É.

- Então, o que acha disso?

Renato Sereno se cala, temos a impressão – mas só a impressão – de ter meneado a cabeça, um movimento reticente que confunde o sim pelo não e não sabemos, afinal, o que quis dizer. Não olha nos olhos, hesitamos se devemos avançar. Pelo sim, pelo não, sinto importuná-lo, e digo, como que para concluir, mas procurando avaliar sua resposta para descobrir se devo ou não continuar o arbitrário inquérito:

- Você me lembra um personagem de Melville. Bartleby.

- Não conheço.

Arrisco, por fim:

- É um bom livro, posso emprestar a você. Quer?

- Não gosto de ler.

Calemo-nos. Renato Sereno gostava da matemática, ainda que tivesse muita dificuldade em calcular corretamente os números da equação. Teimava em escrever dois mais dois igual a cinco. Forjou um novo teorema que, não tendo superado o Grande Enigma de Fermat em mistério, confundiu ao menos os colegas de sala e o professor de matemática, que de imediato considerou impossível e o anulou, sem, no entanto, identificar no argumento equacional de Sereno que equívoco o invalidava. Renato Sereno gostava também dos números imaginários, mas nunca soubera aplicá-los.

***

Acorda pela manhã e se rende desde já à cama; sua mãe o chama e avisa que o café está na mesa, escuta a descarga no banheiro, o chuveiro e depois o roçar na escova de dentes, é sua irmã que sempre levanta primeiro; seu pai escarra e cospe, escarra e cospe, espirra, sempre acorda com crises de rinite alérgica; os raios de sol teimam em se infiltrar pelas frestas da cortina; quanto mais se escorre o minuto, mais se torna frequente o ruído de carros e ônibus na rua. Fecha os olhos e, admitindo sua falta de imaginação, supomos que imagina o que virá a seguir; imagina sua mãe na cozinha, olhando distraída vez ou outra o relógio na parede, quebrado, marcando eterna 1h35, o segundo inerte; imagina a pasta e a escova de dente, a água em redemoinho na pia do banheiro, sua irmã na frente do espelho com o eterno pente na mão; imagina o sanduíche na mesa, contempla-se ao mastigar, ao engolir, espera o alimento atravessar o esôfago e imagina um ponto luminoso no seu órgão; seu estômago então ronca, é hora de atendê-lo, mas não ousa mexer um dedo e só o move porque faz disso um desafio contra a preguiça. Contempla-se no espelho e talvez se pergunte o que mudou de ontem para hoje, se virá um dia a surpresa de não se reconhecer no reflexo, ou se um dia se livrará desse hábito narcísico. Vê passar o ônibus na parada distante e, sem olhar o relógio, se descobre atrasado para a aula; tem as mochilas nas costas e se põe a andar, não – nunca – acelera os passos, não tem pressa e faz uma parada na moça do café. Na escola, recebe uma advertência, e ninguém percebe quando um garoto alto e um tanto desengonçado entra na sala, no início da segunda aula, e se senta numa banca qualquer, nem no fundo, nem na frente do quadro, nem no canto da parede, na terceira fileira da segunda coluna de um sistema de coordenadas seis por cinco. Torna-se indistinto entre tantos rostos; desaparece.

Renato Sereno é, portanto, um desconhecido, com todas as questões existenciais a que o termo alude. Mas ele mesmo nunca se importou com a metafísica do termo. Estudou a vida toda numa só escola e, no último ano antes da formatura, seus professores ainda não sabiam seu nome. Comportava-se bem, era discreto e nunca teve sua atenção reclamada, exceto quando um dia seus coleguinhas de sala o acusaram das bolinhas atiradas em direção ao quadro. Solicitado a sair de sala, sempre distraído, não percebeu a picardia dos colegas e cedeu, não como mártir, para tomar a culpa dos outros, mas porque pensava se tratar de um favor para o professor. Dirigiu-se à coordenação, mas como tivesse se esquecido de perguntar do que precisava o homem, não quis voltar por vergonha e se abandonou pelos corredores. Terminada a aula o professor foi à coordenação, não o encontrou, esqueceu-se dele. Nunca mais voltaram a importuná-lo.

Certo dia no ônibus, voltava do colégio para casa, era noite. Um congestionamento deixava a avenida intransitável, prolongando sua viagem por cerca de duas horas. No meio do caminho, vários passageiros se levantaram de suas poltronas para sondar pela janela uma tragédia da qual participavam alguns automóveis e umas vítimas. Renato Sereno, naquele mesmo ônibus, sentava-se distraído, enquanto as pessoas se amontoavam ao seu lado e se inclinavam para ver melhor. Chegou em casa e seus pais, preocupados, perguntaram por que a demora. Um congestionamento, respondeu, ah, deve ter sido aquele acidente que deu na televisão. Não sei, respondeu e se sentou na mesa para jantar – Renato Sereno não vira nada.

Por vezes, voltando à noite do trabalho para casa, penso em Renato Sereno. Assaltam-me vozes, muitas delas, penso no meu conto, socorre-me meu bloquinho de notas e entre solavancos e tantos me ponho a escrever. Mas as palavras, traiçoeiras, me escapam, escorrem-se pelas mãos como água, ou evaporam e se expandem, ou porque são muitas, ou porque querem dizer muita coisa ao mesmo tempo. Dispenso o bloquinho e me ponho a observar a cidade pela janela, tento imaginar Renato Sereno, naquele mesmo ônibus, os olhos devaneados, perdidos, a cidade através dos seus olhos, o rio sob a ponte, as luzes e os pontos luminosos ao longe numa dança serena entre galhos de árvores, entre frestas e janelas; os ruídos dos carros, o rangir do ônibus, a moça ou o rapaz da vez que senta ao seu lado e parte, sem percebê-lo, nem vice-versa; e a noite que se estende ao infinito, como se estende ao infinito a distância que tento percorrer para alcançar Renato Sereno. Conto para mim essa mesma história, esse mesmo devaneio e tento imaginar o que imaginava aquele jovem rapaz indistinto, o que o incomodava, o que se escondia naquela alma misteriosa, naqueles olhos serenos, nos seus lábios surdos. De imediato cesso minha imaginação, que me escapa como pensamento, por medo de ultrapassar o que eu mesmo delimitei como fronteira entre mim e Renato Sereno. É-me inconcebível agredir tão puros pensamentos, confundi-los, torná-los meus, trazê-los à tona de um passado alheio para um agora só meu. Limito-me ao reflexo nos seus olhos, às coisas que resplandeciam em sua pupila e escapavam para contar a outros o que parecia ver.

Mas quando falamos de alguém, sempre tomamos um pouco dela para nós, ao mesmo tempo em que nos tornamos um pouco dela.

Nunca tive muitos amigos, e não se pode dizer que Renato Sereno foi um deles, mas me agradava sua companhia. Era como um relógio vagabundo quebrado no seu pulso. Costumava encontrá-lo no café na praça perto de onde trabalhávamos. Sentava sozinho, numa das mesas, até que nos conhecemos, graças a um desses acasos imemoráveis. Eu, tímido, e Renato, calado. Não tínhamos nada a dizer um para o outro e ainda assim sentávamos juntos; eu, com meu cigarro, Renato, sorvendo o café, olhos devaneados, perdidos. Uma ou outra pergunta sobre o tempo, a notícia do dia, a última partida de futebol. Renato se interessava por futebol; tinha o jornal sempre aberto na página de esportes. Não tinha time, mas sabia da situação de cada um, de todos os resultados, de todos os próximos jogos, da última contratação. Partilhava suas informações numa cartilha, copiava uns números, resultados de jogos, datas, coisas que eu não compreendia e não me interessavam, já que nunca gostei de futebol e só comentava por falta de assunto, ou porque muito escutava por aí. Nos últimos anos, ficávamos calados, nenhuma palavra, Renato com seu café, eu com meu cigarro; abria o jornal, fechava, deixava na mesa e voltava ao café. Despediamo-nos e partíamos em rumos diferentes. Cheguei a visitá-lo em casa, algumas vezes, e o encontrava com baralho na mesa, as cartas espalhadas, e um silêncio que anuviava a alma. Jogava Paciência e não se interessava por computadores. Às vezes, encontrava uma mesinha de madeira armada, um tabuleiro com peças de xadrez dispostas cada uma na sua casa, e um só banquinho, no qual, supunha, Renato sentava.

Lembro um dia, enquanto fumava no café, esperando sem esperar, pois não marcávamos nada, apenas nos esbarrávamos na mesma hora, Renato vinha debaixo de uma chuva fininha mas insistente, os passos apressados, esquivando-se dos carros, os óculos polvilhados de gotas minúsculas e, debaixo do braço, o guarda-chuva fechado; vinha curvado, protegia o jornal e sua agenda, atravessou a rua e, ao seu lado, a avenida num congestionamento que se estendia além de onde a vista permitia. Lembro vagamente de sua silhueta frágil em meio àquela paisagem cinza e nervosa, as nuvens acima num só clarão, frágeis, esbranquiçadas, que os raios de sol tentavam à força atravessar. Sentado na minha mesa, vi Renato entrar, todo molhado, apesar da chuva fraca, as mechas de cabelo coladas no rosto, enquanto lhe escorriam pequenas gotas de água. Aproximou-se, me cumprimentando, escanteou o guarda-chuva no canto da parede, em cima da mesa, depois sua agenda e o jornal, e se sentou. Com papel guardanapo enxugou as poucas gotas do guarda-chuva, depois o rosto, mas se decidiu por levantar e ir ao banheiro. Achei graça, mas não percebeu; não comentei nada. Conversamos sobre política, o placar da última partida, a desclassificação da seleção brasileira na Copa America, o não cumprimento da nova lei que proibia a cobrança de estacionamentos, minhas dores nas costas, meu casamento recém-acabado (sobre o que falei pouco), mas nunca perguntei por que se deixou molhar todo, se tinha debaixo dos braços um guarda chuva em bom aspecto. Em silêncio, como sempre acontecia no final dos nossos encontros diários, ou como quase sempre acontecia durante todo o encontro, pois raramente falávamos, ou falávamos esporadicamente, deixei que escrevesse em sua agenda, fizesse suas anotações numéricas na cartilha, enquanto eu fumava o sexto ou sétimo cigarro.

Um dia, enquanto nos estendíamos um diante do outro na mesma mesa de sempre, Renato Sereno bebericava o café e rabiscava sua cartilha, fazia contas, eu fumava o cigarro, perguntei, a propósito de não sei que notícia do jornal,

- acredita que se pode prever as coisas através dos números, do mesmo jeito que se pode calcular uma equação?

E respondeu, com inalienável humildade, mas não sem certo mistério e sabedoria:

- Talvez. Se conseguirmos prever a variação dos termos, as variantes, estabelecer coeficientes etc; mas isso nos levaria a outra equação. É como tentar encontrar a posição exata do elétron no átomo num determinado instante.

Lembro desse dia depois do café. Eram dias de chuva, e as palavras faltavam não por escassez de assunto, mas por reverência ao silêncio e à paisagem. Seu guarda-chuva no braço, dessa vez Renato não estava molhado como no outro episódio quando chegara encharcado em posse do mesmo guarda-chuva. Acho que dessa vez não tomamos rumos diferentes assim que saímos do café porque atravessamos juntos a avenida congestionada. Não sei aonde poderíamos ter ido, mas depois que atravessamos não devemos ter continuado lado a lado por muito tempo. Eu tinha acabado de jogar fora um cigarro e já buscava outro na carteira no meu bolso. Renato nem se importava. Perguntei, com alguma coisa de boa educação, se aceitava um e respondeu que não, obrigado. Acho que voltávamos pra casa, não tínhamos outro lugar pra ir, eu e ele. Andava com seus passos quase involuntários, conduzidos mais pela necessidade de locomoção que por vontade própria, função primeira dos órgãos locomotores dos heterótrofos, e não ia em busca de qualquer objetivo essencial, só a solidão de sua casa, a luz tênue do fim da tarde e talvez a televisão ou o som de fora, a chuva, os carros, as crianças, os primeiros bêbados, que lembravam um mundo maior e mais rigoroso. Renato e eu esperávamos para atravessar a avenida. Lembro que desviávamos das poças de lama. Fazia algum tempo que chovia sem parar, não lembrava a última vez que vira o sol. Chovia, estiava, mas as nuvens condensadas, plúmbeas, não se dispersavam. Escurecia no fim da tarde e as nuvens tornavam-se rosadas, e o dia parecia claustrofóbico. Não sentíamos frio, no entanto. Renato era friorento, mas o vento não corria pelos espaços abertos e interstícios entre prédios. Um grupo de jovens amigos compunha a fila única de um cinema sobrevivente do bairro, não lembro o filme, mas fazia parte do que chamavam sessão de arte. Não havia pipoca. Admitimos sempre um abismo entre gerações a partir de pequenos detalhes, mas meu tempo e o tempo deles se encontravam neste ponto: não comíamos pipoca no cinema. Eu fumava e o cigarro entre os dedos se consumia e se servia de metáfora da minha existência. Ao lado de Sereno, esse ser inerte e quase irreal, essa projeção incólume, esse fantasma, e dentro dessa paisagem cinzenta e metafísica, apesar dos objetivismos, eu me sentia desesperado, talvez porque soubesse voltar sozinho para casa e não encontrar ninguém, nem minha mulher, nem meus filhos, nem minhas lembranças felizes, nem os livros lidos. Renato, eu acho, não se importava, talvez não soubesse lidar bem com isso, mas não se importava. Era um bom amigo, talvez, mas talvez não se importasse devidamente. Carecia de curiosidade. Aqueles olhos perdidos, devaneados. Seu guarda-chuva, seu jornal, sua pasta de couro que guardava sua agenda e sua cartilha e outros papéis concernentes ao trabalho. As pessoas ao nosso redor, o grupo de jovens e seus sorrisos, os casais de namorados, mas não só a nostalgia de um tempo semelhante que já me pertenceu, mas as crianças nos braços da mãe, os solitários e as sacolas de compras, as senhoras desgastadas, as lanchonetes, as televisões ligadas, os mundos que não me pertenciam, que não tinham nada a ver comigo, mas que eu sabia que existiam. Mas nada disso importa, tento apenas enfeitar a imagem, preencher lacunas, colorir e redefinir detalhes; corro o risco do excesso, mas é de pouco que se faz muito. O que importa é que, enquanto acendia um novo cigarro, esperando o sinal fechar para atravessarmos, não sei por que mas me dei conta pela primeira vez de que Renato nunca perguntou por que eu fumava, por que sempre fumei, desde que o conhecia, desde antes, muito antes, desde antes do casamento, na minha adolescência corriqueira.

Começo a me confundir com Sereno; começo a confundir meus passos aos deles. Depois do fim, quando finalmente desapareceu, passei solitário minhas tardes disponíveis no café. Quando tirei férias, decidi procurar por Renato, caminhar sobre sua história, seu passado. Fui a sua cidade natal, pois não era daqui. Não sei como nos conhecemos, não sei a que acaso se deve. Renato Sereno não fazia as coisas acontecerem, ele não movia as peças, e, talvez por uma tendência newtoniana das coisas em permanecer em repouso, as coisas dificilmente aconteciam a ele. Mas, um dia, graças a um desses acasos extraordinários que fariam um sorteado na loteria, ou um mergulhador encontrar uma das caixas de chá atiradas ao mar durante o episódio da Boston Tea Party, e que eu mal percebi, Renato Sereno e eu nos conhecemos. Não descobri muito sobre ele, só o que me contou vagamente, com parcos detalhes, concedendo pouco ou nenhum interesse, e sempre se desviando do assunto, quando simplesmente não se calava para evitar mais perguntas. Eu não insistia, as perguntas se faziam não por curiosidade, mas pela lógica da conversa, sei lá, pela boa educação; eram perguntas também muito vagas, que não demonstravam qualquer interesse no assunto a que se referiam. Soube que seus pais também desapareceram, deixaram de existir. De modo que boa parte de minha investigação se deu à imaginação e às minhas próprias lembranças. Comecei a agir como Renato Sereno, não me interessava falar, agir, fazer; me olhava no espelho e reconhecia Renato. Não era um rosto ao qual estava habituado.

Renato falava de uma vaga lembrança que vez ou outra o afligia nos sonhos e no pensamento. Encerrado no banheiro, num silêncio que o isolava de todas as formas da rotina, e ainda assim dentro dela, o banheiro como capsula de preparação, a pasta de dente e a escova derrubadas na pia, enquanto sua mãe provavelmente descia o prédio com o cachorro, hesitava se devia ou não acender a luz, tomar banho e acabar de vez com a indolência de seu corpo. Lembra-se de tudo isso muito vagamente, e sua incerteza só não o desmentiu porque todos os dias se repetiam assim na moviola eterna de sua vida. Era uma lembrança falha: contemplava-se no espelho, num dia como qualquer outro, e pensou ter reconhecido no reflexo o rosto de alguém de quem não conseguia se lembrar. E agora, com freqüência, a lembrança o assaltava e insistia em moldar aquele rosto desconhecido ao meu. Na época, não devo ter dado muita atenção, mas hoje, diante das circunstâncias, penso nisso com freqüência. Muito me intriga.

Assaltam-me imagens de Renato Sereno, com seus óculos e sua agenda, o jornal debaixo do braço, no silêncio do ato de pagar a passagem no ônibus, entre os rangidos dos automóveis, na sua chegada silenciosa no café, no seu escritório silencioso, sua presença que não demovia a solidão, mas a exponenciava, sua presença fugidia, seu andar descompromissado, seu silêncio confortável, jamais ameaçador, que não constringia, que não limitava, sua ausência de discurso. E penso em quando pronunciava os restos de palavras que na verdade fugiam de sua boca. Era como um relógio quebrado, um ponteiro numa hora indecifrável entre 1 e 12 que não fosse nenhum dos números do relógio, que não era nenhuma hora, mas o instante eterno. Renato Sereno aceitou viver como se aceita uma dessas canetinhas que oferecem os ambulantes nos ônibus, “sem compromisso”, a indiferença no ato de pagar.

Em suas últimas aparições em público – viam-no entre as ruas tumultuadas do centro da cidade –, era visto com sacolas nas mãos, caminhando no mesmo compasso de sempre, olhos devaneados, perdidos, cabelo desgrenhado, andar desengonçado, e muitos partilham o mesmo depoimento: parecia desvanecer, não tinha aparência frágil, sua palidez era incomum, a pele quase translúcida, fantasmal, muitos tiveram a impressão de enxergar o trajeto da luz através de seu corpo. Sua presença sempre se fez nula, sempre negou qualquer protagonismo, nunca se importou em ganhar o jogo, nunca se importou ao menos em tentar jogá-lo. Contei uma história impossível às palavras, irredutível a elas.

Renato Sereno. Irredutível à palavra. Poderia descrevê-lo, descrever suas ações, adivinhar-lhe pensamentos, ou acrescentar, inventar. O infinito, a aterradora ideia do infinito. Mas o infinito se reduz à palavra e muitas vezes parece inofensivo. Da minha parte, sempre senti um vago incômodo na impossibilidade de apreendê-lo, de imaginá-lo. A cabeça se confunde. Mas Renato Sereno é essa vaga ideia, esse vago momento que expande os espaços e todas as coisas. Esse relógio quebrado. Aqui está escrita e ainda se escreve e muitas vezes voltará a se escrever a história de Renato Sereno, que precisou se inventar, se escrever por si só, como uma mão que se desenha a si própria. Aqui jaz. Não há quem me desminta minha própria história.

Renato Sereno,
outubro 2011.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

As poesias que não escrevi

Faz muito tempo que não escrevo poesia. As razões, suponho, calculo, vasculho, são tantas e nenhuma, tenho apenas uma noção vaga dos motivos específicos, mas a verdade é que as desconheço. Parece que a inspiração, às vezes lampejante em todo seu vigor, não falta, mas as palavras cessam na ponta dos dedos, se escasseiam, e penso envergonhado que não tenho muito a dizer. Quantas palavras, quantos versos desperdiçados em uma poesia que não deu certo, que não soou bem ao se reler? Me pergunto quantas pessoas morreram por não conseguir escrever poesia, por ter perdido subitamente a capacidade de escrever e não ter suportado o resto dos dias numa vida permeada de grandes desejos e grandes sentimentos, de amores e de improváveis acasos, ou de serenidade e paz, e não poder relembrá-los através das palavras. Não descarto a possibilidade de me tornar insensível a tudo isso, uma vida enrijecida pela indisposição das palavras, uma vida cujos principais momentos impressos na memória se desbotam, se apagam, embaçadas por uma névoa branca que invade e cerca os detalhes de cada imagem, a névoa imperdoável do tempo, tudo porque as palavras me faltam, e, aqueles momentos, não posso relembrá-los. Alguns versos surgem por vezes num lampejo, carregando o sentimento intenso do instante pregnante, mas se tornam logo vagos, frágeis, esmorecem por não se completarem em outros versos. E a vida torna-se enrijecida por não poder reviver tais momentos, senti-los novamente através das palavras, aquelas palavras que despertam com toda intensidade a memória distorcida pelo tempo, mas que, essencialmente, recuperam as sensações do instante. Lamento não ter palavras para acioná-la.

Ela me ligou ontem à tarde, na hora crepuscular, a preferida dos poetas, o céu esmaecia entre os prédios, o azul refluía pelo horizonte e o negro da noite se aproximava, eu na varanda desatento aos aviões, livro no colo, palavras em redemoinho, a paisagem, a mesma de sempre, de polígonos, quadrados e retângulos de cores frias e alguns pontos luminosos espalhados pela rua, os postes já se encontravam acesos, e o deslizar das rodas no asfalto, o zumbido que ecoava melancólico nos meus ouvidos seis andares acima do chão. Quando o celular tocou, batia o sono, e as palavras já brincavam afoitas diante dos olhos, embaralhavam-se, confundindo-os, criando novas imagens, situações diversas e arbitrárias, que não correspondiam às linhas escritas no livro. Eu despertei, vi seu nome no visor, atendi, oi tudo bom, tudo bem e você, te atrapalhei, não, ó tô te chamando pra irmos à praia mais tarde pode ser ou vai tá ocupado, pô tudo bem posso ir, massa, só nós dois, não o pessoal do curso tá indo, tudo bem, então tá tchau tchau, tchau, até mais, ela desligou primeiro, o celular na minha mão, encostado no ouvido, calado como se todas as palavras que eu queria ouvir tivessem cessado no último instante, ou se desviado por outra linha e se perdido para sempre no labirinto infinito das linhas telefônicas, no infinito ionosférico. Um vago desejo de não-sei-o-quê, uma vontade de me exaurir – de me descarregar, sim, eu precisava –, se apossou de mim e pensei, por um instante, em jogar pela varanda o celular. Mas tudo isso se passou em um ou dois segundos, e eu poderia jogar tinta no quadro, algumas cores frias, escurecê-las no preto e no azul-escuro e pincelá-las, besuntar a tela e dizer que era a imagem de um garoto com um celular no ouvido, livro no colo, sentado na cadeira da varanda diante do mundo. Diante da noite, que agora engolia tudo, e eu já não podia ler aquelas palavras negras nas páginas friamente azuladas de um livro vermelho.

Risos, piadinhas, boas conversas, risos. Caminhávamos à beira mar, quando, no horizonte distante, onde não se distinguia a linha que dividia o céu do mar, vimos a lua nascer atrasada, ainda que dissesse radiante boa noite, alaranjada como se o sangue fervesse dentro dela. No início, não a reconheci – e ela jamais me perdoou –, chamei a atenção dos meus amigos para aquela bola disforme que crescia lentamente, como uma explosão de filme hollywoodiano, como a explosão de uma bomba atômica que cresce no horizonte diante dos seus olhos e você já não tem tanta esperança, mas nós tínhamos porque era uma noite linda e agradável e nos diluíamos no ar frio que o vento trazia do mar. O que é aquilo, ela atenta à bola por entre nuvens que não se distinguiam como nuvens, apenas umas névoas que borravam todo aquele alaranjado, não sei, nossa que coisa estranha, e nenhum de nós conseguia identificar, e isso me lembrou o dia em que estávamos na casa de um amigo, na piscina que ficava na cobertura do prédio – muito, muito acima do chão – quando no céu, muito além dos prédios da cidade, em qualquer parte arbitrária que não fosse extremidade, surgiu de dentro de uma nuvem um brilho inesperado, como quando riscamos um fósforo, que atingiu seu ponto mais intenso e se reduziu a uma luzinha mínima de avião, e só então pudemos identificar aquela luz misteriosa, quando eu já de boca aberta revisava minha crença em relação a seres alienígenas e discos voadores e milagres cientificamente inexplicáveis e improváveis. Restituídos de nossa surpresa, começamos a palpitar, e mal entramos em consenso, é a lua, ela já se elevava imponente e solene, inalcançável no horizonte, acima do mar, coisa linda, obrigado Deus por uma lua maravilhosa, por uma noite linda como essa, mas você não acredita em Deus, isso não quer dizer que Ele não possa nos presentear com um espetáculo desses, e nós rimos e apreciamos aqueles minutos poéticos que transcorriam estranhamente rápidos demais e só poderíamos restituí-los através da memória. E eu não me afligia por isso, pois sabia que, diante de tamanha beleza, a memória só poderia potencializá-la, e eu guardaria aquela imagem, aquele momento, por muito tempo, até que, esclerosado, só me restasse isso dos tempos lúcidos da minha vida. Por um momento, tive vontade de perscrutar o rosto dela em sua admiração, se seus olhos brilhavam, mas o espetáculo já fechava suas cortinas, e eu só podia vê-la recuperando-se de suas emoções. Talvez estivesse tão surpresa quanto eu, mas aqueles momentos em que nos precipitamos em admirar um mistério que se desvendaria com o tempo, esses momentos são os que permanecem, os que guardamos para contar por aí sobre aquele possível milagre, mas que talvez não soasse tão surpreendente, tão esplêndido quanto nossa impressão inicial. Em mim, aquilo, sempre que me recordasse, causaria uma impressão semelhante à inicial, arrebatadora, ou ao menos a sensação de que presenciei um milagre enquanto fui ignorante, acreditaria nisso porque acredito que a vida é feita de instantes e que esses instantes perduram para sempre em nós, em todos os próximos instantes, e mesmo que se explique o fenômeno, o sentimento daquele instante ficará impresso para sempre.

Andamos até a pracinha e lá nos acomodamos no meio da grama. Sentimos o vento no rosto, o esvoaçar dos cabelos, e toda a poesia de um momento como esses, com suas piadinhas e nossas conversas evasivas. Uma cena me chamou atenção, quando sentamos na arquibancada da pracinha, e me tornei a ela com vaga curiosidade, nenhuma pretensão, e até mesmo com uma vaga consciência da atenção que eu concedia. Era um gatinho, mínimo ser, acuado sob um mínimo pedaço de chão que ocupava no meio da praça, entre pés e pernas que passavam e as chances de ser pisoteado e reagir segundo o instinto em seu estágio mais primitivo. Entretido ou amedrontado, não parava de lamber qualquer coisa no chão, e não olhava para cima, para aqueles gigantes, de jeito nenhum. Seu comportamento o denunciava, sua atitude impensada, inconseqüente, e ninguém o percebia. Quase me detive a acompanhá-lo pelo resto da noite, abstraído, quando fomos embora, para fumar nosso baseado longe de testemunhas.

Nessa madrugada, na outra, hoje, talvez um dia qualquer, ponderei comigo mesmo, em minha cama, antes de dormir, se minha infância não estaria desaparecendo. Talvez sim, talvez aquelas cores e aquelas imagens de outrora desbotassem, ou se perdessem por aí, se escondessem no recôndito da memória até que um dia, quando velho e não vivesse mais a intensidade dos instantes, apenas das recordações, pudesse vasculhar nela os resquícios de uma criança que já fora eu. Mas hoje penso na infância sem aquela nostalgia romântica que permeia os livros de recordações; só acho curioso como algumas coisas perduram. Se há uma cor que definiu a paisagem na minha infância, essa cor é aquela do final da tarde, quando a noite se aproxima, quando o céu desbota e há um silêncio que destoa da música de todas as outras horas, aquelas horas do dia preferidas dos poetas e que correspondem às melhores metáforas. E o ventilador girando na minha cara, enquanto fingia que pensava, mas apenas me deitava e escutava os sons da rua ou a musiquinha do vídeo game que quase nunca jogava. É preciso concordar, há um certo prazer em recordar, faz-me desaparecer, já que, distante do passado, apenas o observo e, no presente, não vivo, inexisto. É como se me destacasse do mundo ainda estando nele, ou melhor, é como se fizesse parte dele, em seu tempo de tempos imemoriais, inconcebíveis para nossa contemporaneidade.

Naqueles tempos, escrevia poesia e nem sabia. Fazia versos sobre coisas específicas e banais, carros a 100km/h, rodas de bicicletas, pássaros e árvores, sobre a rua onde eu morava, a única rua de terra dentre as quatro paralelas, que descia em direção à linha do trem, enquanto a avenida perpendicular a ela passava acima, bem asfaltada, e as casas pareciam prestes a serem tragadas para debaixo da terra, e eu, voltando da escola, caminhava até o meio da rua para descer solenemente como um superherói em slowmotion numa cena caótica onde ao fundo tudo explode e as construções desabam, e contava histórias, também em versos, dos meus personagens favoritos, meus fantasiosos heróis coadjuvantes, nunca centrais, pois minha inocente humildade de criança não se importava em competir pelo mais forte, pelo protagonista. Com meu escasso vocabulário, procurava a rima perfeitinha e quase não importava a concisão; desconstruía toda a oração em busca dela – fazia hipérbatos e nem sabia – e até às preposições era permitido o final do verso. E quantos versos não gastei dedicados às minhas paixões semanais? É engraçado, e parece exagero, sim, não é bem verdade, me apaixonei pouco quando criança – ainda lembro o nome de todas elas – mas tive um amigo que se apaixonava com uma freqüência inacreditável, e tinha uma aptidão para a dor do amor romântico que, com certeza, demandou mais versos que os que escrevi para minhas paixonites. Sempre achei que se tornaria poeta. Quantos amores não desperdicei, quantas hipérboles e clichês não usei, e o tempo que perdi, frustrado, impaciente como um poeta decadente, à procura da rima perfeitinha? Se me encontro diante da mesa, caneta na mão, papel estendido, penso que um dia fui poeta, uma criança poeta, e me surpreendo com aquelas palavras que surgiam da minha inocência e honestidade.

Um dia perdi todas as poesias que escrevi enquanto consciente. Impossível recuperá-las, talvez minha aptidão para a poesia tivesse sumido com aquelas poesias. Perdi a vontade, passei muito tempo escrevendo pornografia nas bancas da sala de aula, em homenagem aos alunos do colégio. Talvez tenha sido minha primeira tentativa de divulgar meus textos; eu não os assumia, escrevia-os no anonimato e eles se tornavam públicos como as frases subversivas nas portas dos banheiros. Eu não me importava, mas me sentia orgulhoso quando ouvia comentários a cerca deles. Além do mais, eu conservava o nome real de todas as pessoas a quem dedicava minhas fantasias sexuais. Ouvi chamarem o autor daqueles textos de pervertido muitas vezes, mas eu nunca quis ser apelativo: todas as minhas palavras eram sinceras em seus desejos.

Por que, se escrevia tanto naquelas bancas, não conseguia escrever poesias? Devo ter feito algumas tentativas, em minhas viagens de ônibus, ir para o colégio, voltar pra casa, comecei a me sentir à deriva daquele cotidiano, ainda que estivesse muito bem inserido nele. Deixava-me levar e talvez isso tivesse me acomodado. Não, chega de tentar investigar a origem do meu bloqueio criativo no âmbito da poesia. Sim, tentei muitas vezes escrever poesia, arrancava páginas do caderno, derramava algumas palavras, conseguia alguns versos, mas talvez não me sentisse satisfeito. Comecei a escrever poesias para depositar em ônibus, amaçava o papel, fazia uma bolinha e jogava por aí, ou simplesmente deixava a folha aberta descansando na poltrona. Um poeta anônimo, frequentador de ônibus, despretensioso, quem seria, quem poderia ser, seria algum movimento, algum manifesto para divulgar novos talentos, ou simplesmente para recuperar a vontade de ler, era apenas um estudante adolescente em crise de criatividade, acomodado, perdido entre os estudos e entre as indecisões dessa fase da vida. A verdade é que eu não pretendia decidir nada, nem estava em crise existencial, só uma vaga angústia de se sentir vivo em meio à indisposição das palavras.

Comecei a me desfazer em palavras.

Às vezes, à noite, numa dessas noites em que pondero comigo a vida, sou assaltado por uma inspiração e um impulso de escrever. Cautelosamente, no escuro, tateio com a mão a cabeceira, encontro carteira, chave, e outros objetos que costumo depositar lá e, finalmente, acho a caneta. Com cuidado, trago até mim e escrevo na outra mão o que andei pensando; tento ser o mais sintético possível, escrever de modo que no outro dia, quando acordar, consiga me lembrar de tudo que pensei. Escrevo na mão, sem enxergar, e as palavras são imprecisas, por vezes se atropelam. Às vezes, me levanto e vou até o computador, que está sempre ligado e eu só preciso ligar o monitor. Abro o bloco de notas e me ponho a escrever. É claro que as palavras, aquelas nas quais estive pensando durante o tempo de vigília, se perdem, mas o que me preocupa mesmo são as ideias principais. Tantas vezes me levantei pra escrever aqueles versos que surgem num lampejo, aquelas palavras que parecem se concatenar e se envolver umas com as outras de modo que produzam sensações, e tantas vezes me decepcionei ao visualizá-las no monitor, tendo que voltar frustrado à cama. Ou no outro dia, quando tinha escrito na mão a ideia que desencadearia todo o texto, e ao tentar desenvolvê-lo, as palavras se tornam escassas, não as encontro, a ideia não me parece mais tão boa, tão interessante quanto imaginava, e as palavras me traem, talvez me traiam.

Me pergunto se voltei a escrever poesia depois dessas tentativas. Talvez não devesse reler o que escrevo, é como se as palavras tivessem validade para mim, perdessem o vigor, e lentamente perdessem o sentido e a verdade, desvanecessem. Lembro daquela tarde em que ficamos calados, sentados na sombra daqueles coqueiros, diante do mar, quando nossos amigos mergulhavam e nossos pecados nos constrangiam; fumávamos e isso era a única coisa que nos ligava, compartilhar o isqueiro, e eu remexia na mochila, sem saber se pegava o livro para me distrair, ou o caderno para escrever os pensamentos e os desejos reprimidos, mesmo sabendo com certeza que, na hora em que derramasse a tinta da caneta na página, as palavras escasseariam. O silêncio se prolongou e nossos amigos voltaram, conversamos e rimos enquanto voltávamos pra casa, e você caminhou de costas, brincando com suas pegadas, invertendo a lógica das ações, como se assim voltássemos no tempo, como se, ao invés de voltarmos pra casa, as pegadas simplesmente fossem para debaixo daqueles coqueiros. E enquanto as pegadas dele voltavam, as minhas continuavam em frente, e assim nos desencontramos para sempre, pois as antigas pegadas que nos levaram ali foram inevitavelmente apagadas tanto pelo tempo quanto pelas águas do mar. E agora as palavras rememoram o que se passou, e parece que elas se escrevem por si só, como se se inventassem, como se se reinventassem. E sobre o tempo o que é que se pode dizer? Em quantos minutos depois um momento pode se transformar em passado, em memória? Quando, pensando bem, as coisas se transfiguram ou se esclarecem e aí percebemos o que aconteceu? Quando, naquele momento, sentados debaixo daqueles coqueiros, eu passei meu caderno de anotações e ele leu algumas palavras, e leu exatamente estas palavras que acabei de escrever, as confissões derramadas nestas páginas. E ele me passou de volta e eu li no seu rosto estas palavras e por isso eu as escrevo. E torço para que elas não tenham perdido sua magia.

Então... e se as palavras se perdem, desvanecem, então continuarei escrevendo, sem parar, para sempre, como os dias em que passamos juntos e a música tocava 16 horas por dia e parecia nunca acabar e não queríamos que acabasse. Não para, eu digo, e escrevo, sem parar, como o tempo que passa, o tempo que não para, e continuo escrevendo, enquanto o tempo transforma o presente em passado, e assim vou rememorando. Antes que elas me decepcionem. Vontade de desistir. Vou pra cama, lá as coisas deixam de existir. E assim acordo, tentado a escrever, ao mesmo tempo frustrado, exausto, e me deixo engolir pela cama, deixo meu corpo ser tragado pelo colchão, me afundar nas profundezas dos meus próprios sonhos derramados ali. E os dias se passam até que nós nos encontramos de novo, mas ele sempre em outro tempo, eu com ela, descansados da praia, ao redor nossos amigos, e nós estamos ansiosos para aproveitar a noite, porque a noite é uma criança devassa, e todos os espíritos libertinos começam a se exaltar. E eu penso quando poderei transformar isso em poesia.

Tenho lido tantos livros; cada um deles se torna um pouco de mim, cada um deles é uma experiência. Mas penetrar em seu universo, tentar desvendar seu mistério – é um absurdo. Quantas páginas não fechei, desnorteado, porque trouxe comigo mais uma experiência misteriosa, e porque me deixei absorver pelo seu mundo, apesar de não conseguir desvendá-lo completamente e por isso me senti um tanto quanto frustrado? Comecei a sentir cada vez mais que devia abandoná-los, deixar de ler, pois o mundo real é demasiado misterioso e complexo por si só. Mas é um erro, fugir é apenas uma solução fácil; deixei de tentar compreendê-los para senti-los, ou melhor, observá-los, deixar pairar meus olhos diante das palavras sem julgá-las, sem racionalizar mesmo o absurdo e a fantasia de suas situações. Tanto li Cortázar. E são tantos mundos que a mim se apresentam, já não me perturbo em desvendá-los, em compreendê-los, o mistério torna-se parte de sua natureza e de mim, e eu simplesmente os vivencio como o faço em meu próprio mundo, este que se apresenta diante de mim no fluxo do cotidiano, em seus milagres e mistérios.

Enquanto leio todos esses livros e me encontro num cantinho dentro deles, enquanto percebo meu mundo através deles, quando não faço parte de sua intensidade, de sua concretude, quando simplesmente observo, todos esses séculos que se derramam no nosso tempo – mas que tempo? – e tudo aparece num único instante, deixo-me pairar, abstraio-me, destoando diante da rapidez das coisas, e, então, sinto-me tornar cor. E quando, dentro do ônibus, à noite, percorro o caminho de volta a minha casa, e a cidade passa diante da janela, e eu tiro meus óculos e as luzes se expandem, e todas as coisas tornam-se embaçadas, se fundem, são apenas cores, a ansiedade desaparece, e nem a memória nem as expectativas resistem ao instante, e eu finalmente quase me esqueço de pensar. Minha mão, pela janela, acaricia o vento e parece flutuar, surfar em suas rajadas, parece autônoma, meus membros se fragmentam e, afinal, quase não existo. E tudo isso quase se torna poesia.

Cada vez mais me torno cor da cidade, não uma cor glamorosa, vivaz, que se distingue, mas uma cor que se matiza, que se esbate na monocromia da paisagem, do cotidiano; cada vez me vejo através de mim mesmo, abstraio-me, e me torno cor sob a luz e me apago no escuro. As lembranças se perdem por aí, os fantasmas se projetam no espaço, enquanto eu vivo os instantes, por minha juventude impensada e inconsequente e ansiosa.

O tempo – que tempo? – que atravessou séculos e que desemboca no nosso mundo contemporâneo, arrastando sua multiplicidade de informações, de culturas, de poesias. Em nosso tempo, o que podemos dizer, se todos podem dizer alguma coisa, se todos descobriram que podem escrever poesia, mesmo que não o façam em códigos verbais? Para que poeta em tempos de penúria, perguntou Holderlin, e para que, então, poetas em tempos de exuberância quando todos se sabem poetas, eu pergunto. Quando as informações não cessam e as palavras, jamais, e todos podem se pronunciar, porque sabemos que tudo é poesia, até os pós-modernos. E nossos próprios olhos nos confundem e tudo que precisamos fazer é redescobrir, é ver de novo e atribuir significados. Parei de escrever poesia por incapacidade, porque meus sentimentos estão de tal formas mesclados, felicidade e tristeza tornaram-se indissociáveis no espaço-tempo, que não conseguiria distinguir as palavras e suas acepções das minhas próprias sensações. Parei de escrever poesia e não tentei mais, jamais como ato de protesto, mas porque poesia não é palavra, apesar das atribuições românticas e sentimentais de nós (nós, por que não?), jovens poetas, jovens. Parei de escrever poesia porque posso ouvir minhas palavras na boca dos outros, porque posso encontrar o que quero dizer nos olhos e nas coisas em concreto, no silêncio das ruas e nas horas românticas do dia. Sim, tudo é poesia, basta olhar de novo, todos podem fazer poesia, os miseráveis, os rotos, os ignorantes, os ingênuos, aqueles prestes a desaparecer, as crianças serelepes hiperativas inconseqüentes caladas silenciosas com a inocência nos olhos e a esperteza nos atos e a verdade no coração, os intelectuais, os poetas do submundo, os poetas dos subúrbios, os homens de preto, os dias incontáveis – porque neles há vida –, a fome e a pobreza, os ativistas, os anjos, os deuses, os pseudo-intelectuais, os velhos poetas, os blogueiros, os jovens que incessantemente atualizam o twitter, os playboys, os ricos, os cachorros das madamas, o céu e a terra, os seres além-fronteiras, além-mares, além-mundos, os interplanetários, os sonhadores, os melodiosos, os bêbados deitados no próprio vomito, os cineastas do Central, as rachaduras nas calçadas, a prefeitura que tenta reconstruir a cidade, os pisca-pisca desregulados nas fachadas dos prédios, a falta de senso estético – mas tudo é sensação –, os abstracionistas, os meias-palavras, as menininhas Crepúsculo, Malhação, as prostitutas, os drogados, os estudantes, os terceiroanistas sufocados pelo vestibular, os protestos contra o aumento da passagem de ônibus, os ônibus depois da meia-noite e a cidade que passa através das janelas com o silêncio e a vida latente, o chão que reluz à noite sob as luzes dos postes depois da chuva da tarde, a manhã que surge suavemente em seus diversos tons até que o sol se instale reinante sob nossas cabeças e o cinza nublado as nuvens carregadas se dissipem, os moradores de cobertura, os maconheiros, os maloqueiros, os pedintes, os cheira-colas com suas eternas garrafas nos narizes, os insones às três da manhã sentados na varanda a TV ligada reluzente, os programas chatos, os filmes dublados, os jovens atores, os velhos, os rangidos metálicos dos automóveis, o congestionamento nas principais avenidas e estradas e a vida que poderia surgir daí através de Cortázar, as cartas que guardam tantas palavras de amor e de perdão e de confissão e não são lidas, e são rasgadas, e são queimadas, e são retornadas, e são lidas através de visões difusas pelas lágrimas, os presentes rejeitados, aqueles que nunca foram dados, aqueles recebidos com carinho e cumprimento, os amantes nas lanchonetes, percorrendo os corredores do shopping center, as roupas que não couberam porque elas estavam gordas, ou magras demais, as roupas que não puderam ser compradas, as roupas que se desgastaram e foram doadas, os gestos simples, os pequenos gestos, os gestos que passam despercebidos, os amores da vida que não se reconhecem no corredor do banco, os apaixonados, os platônicos, os rejeitados, a primeira noite no motel da namoradinha, a primeira noite da virgem quando no mundo não há mais virgens, os santos, os demônios, os eremitas, os ascéticos, os sofredores, os crentes, os velhos cristãos dentro da capela ajoelhados palmas juntas rezando mil ave-marias pedindo perdão pelos pecados pedindo proteção para a família pedindo uma morte rápida e sem dor, os velhos que se sentam sobre as pedras em frente ao mar e se põem a ler (isso ainda existe) os clássicos ou os livros de fantasia Harry Potter Crepúsculo Brumas de Avalon ou os livros espíritas, a Bíblia aberta num cômodo especial no meio da sala, o café da manhã com a família reunida, os nerds, os viciados, os retratos da família espalhados pela casa, os retratos das antigas gerações, os sorrisos ingênuos, a verdade que transcende a matéria física, mas que parte dela, as luzes desfocadas através dos olhos do míope, o vento no rosto no automóvel em alta velocidade, a adrenalina, a sensação de que tudo é paz e tranqüilidade e que seu mundo e seu tempo são outros, e que as coisas para cada um são assimiladas, percebidas em seus tempos específicos, e as músicas, ah, algumas delas me fizeram sentir a verdade, as músicas nas rádios, cheias de ruídos e chiados, no som de alta potência, na balada, no fim da balada quando todos cantam juntos, bêbados, exultantes, satisfeitos ou não, cheios de alegrias que se derramam em forma de cerveja e lama pelo chão, o coração pulsando desejoso, o eterno desejo, incessante, incontrolável – um dia vai explodir –, os desejos e a ânsia de satisfazê-los que revolvem o estômago e sufocam o coração. Sim, todos podem dizer alguma coisa, quem sou eu para me por a escrever, então? E se sabemos que tudo se interdepende, e que o mundo não anda por si só, então que todos tomem seus próprios rumos, por que não? Se não há mais nada a dizer porque tudo já foi dito, só nos resta as redescobertas, captar o óbvio, mesmo em toda sua ambigüidade, viver a intensidade do momento, observar as coisas e se abstrair nelas. Pus-me, então, a escrever haicais.