Vira e mexe me vejo pensando em Malcolm McDowell (alguma espécie de paixão platônica?) e em como ele atua bem (já perceberam?), sempre com algo de sarcástico e mordaz. Fui procurar algum filme interessante em que ele protagonizasse e eis que encontro Se..., de Lindsay Anderson. Li a sinopse e pensei: “ora, típico do Malcolm! Vou ver!” E vi.
Me surpreendi. Aliás... em que filme a carreira dele decolou mesmo? Laranja Mecânica? Não?
Rapaz, que filme interessante! Muitíssimo interessante, bastante contundente para a época! If... retrata bem o espírito rebelde que encarnara na juventude explosiva (e que isso sirva como uma alusão ao próprio filme) de 60. If... foi feito em 1968, numa época em que se alastrava pelas ruas, pelas escolas e universidades, as mais controversas idéias da contracultura. O tradicionalismo esclerosado e medíocre em que estava sustida a sociedade fedia e dele já não rebentava nada. E contra isso, as novas gerações lutaram energicamente.
E nesse contexto, a arte tentava das suas façanhas. Na França, Godard e amigos inovavam toda a linguagem cinematográfica, desde a estética às abordagens temáticas, e contribuíam com sua crítica ao tradicionalismo, ao convencionalismo e a tudo que perpetuava numa estagnação social. Sem precisar repetir (e repetindo) que o cinema francês foi o mais incendiário nas idéias e nos experimentos, Lindsay Anderson, no entanto, deixou também uma marca na história do cinema para os ingleses. E nada mais agressivo e transgressor que uma crítica à instituição educacional do país e seu sistema de ensino obsoleto e inefetivo.
1. Casa escola – Retorno...
A estória começa com o retorno às aulas e nos apresenta os personagens, quem é oldschool e quem é novato. E sob a mesma ótica, duas gerações de alunos se fazem narradas: a turma avançada de Mick, e a turma das crianças.
Tudo parece normal nesse começo, a euforia das voltas às aulas, a timidez e reclusão dos novatos, a frustração por estarem retornando, algumas amizades já bem desenvolvidas, e a espontaneidade dos oldschool. É impossível identificar o que há de errado, mas essa atmosfera recende à mediocridade. Vez ou outra, algum antigo aluno resmunga algo contra o retorno às aulas. “Tudo de novo”, alguém diz, tudo de novo.
Essa atmosfera de habitualismo vai se revelando e se transformando na verdadeira ignomínia que é aquela instituição. E isso se revela desde a exploração de crianças e o homossexualismo pedófilo dos coordenadores até a incompetência e o descaso hipócrita dos diretores e superiores. Os alunos, naturalmente, adaptam-se como podem a essa realidade.
“Quando começamos a viver? É tudo o que quero saber”, Mick. É então que começa a cair a ficha e percebemos que saberemos o que eles, os personagens dessa estória, sabem.
2. ESCOLA – Mais uma vez reunida...
Reunidos na igreja, todos cantam quase em meticulosa harmonia, como uma orquestra, dentro de um regimento convencional marcante em todas as horas do internato. É tudo uma rotina severamente moldada.
Algo que me interessou particularmente nesse capítulo foi uma cena em que o professor de História da turma de Mick faz uma insinuação desmascarada e contundente quando sugere algo de superficial e demasiado simplista na interpretação positivista da História, nas suas aulas rotineiras. Essa insinuação é escamoteada pela falta de visão crítica dos alunos, que aparentam perturbação ao ouvir idéia tão inédita.
Logo depois, o professor de matemática das crianças dita princípios da geometria sem qualquer compromisso quando, de repente, para e esbofeteia um aluno qualquer. Caminha mais um pouco, proferindo alguns outros princípios e ataca outro aluno.
3. Tempo do período
O golpe aqui é dado quando se revela, num tom conciso e frio, a prática homossexual e pedófila por parte dos coordenadores. Philips é um dos garotos da turma mais nova, é alto e convenientemente bonito, mantém uma postura sempre cavalheiresca e, com seus cabelos dourados e sua face suavemente modelada, infantil e límpida apesar de bem aparentar seus 17 anos, é encantadoramente delicado. Philips trabalha como uma espécie de acólito para todas as horas para Rowntree, um dos coordenadores. Rowntree, após dispensar Philips por hora, troca algumas palavras com seus amigos coordenadores. Um deles confessa estar morrendo de inveja do amigo por ter Philips como seu próprio efebo, e outro acrescenta: “Sabe o que o Patridge de Haig House me disse? ‘Por que não nos manda o Bobby Philips numa dessas noites e nós te mandamos o nosso Taylor?’”.
Essa perversão é repelida por Richard Denson, outro coordenador (mister dizer que o mais carrasco para Mick), que defende a atitude exemplar. E acrescenta: “ademais, essa paquera homossexual é algo tão adolescente”. Rowntree, para contradizê-lo, chama de volta Philips e o avisa que a partir de então “será subordinado ao senhor Denson”.
Neste capítulo, Mick revela seu instinto belicioso e insurreto. “A violência e a revolução são os únicos atos puros”, diz. E por entre as leituras aleatórias que ouve de seu amigo e goles de bebida alcoólica, acrescenta: “A guerra é possivelmente o último ato criativo”. Depois, todos saboreiam a imagem de uma modelo na revista, e Mick diz com palavras misteriosas: “Só há uma coisa que se pode fazer com uma garota assim: caminhar para o mar junto dela, sem roupa, enquanto o sol se põe, fazer amor uma única vez... e então morrer”.
Aqui também vemos ser alimentada a raiva de Mick contra Richard Denson, os coordenadores e tudo o que eles representam e contra a própria instituição escolar.
4. Cerimonial e Romance
Por outro lado, Mick demonstra sua poeticidade bélica enquanto luta esgrima com os amigos. Mick ironicamente representa a Inglaterra e a suposta liberdade que ela pressupõe. A brincadeira toma rumos mais agressivos e termina machucando a mão de Mick que exclama surpreso, mas contente: “Sangue! Sangue de verdade!”
E o ápice do ridículo e da hipocrisia é quando é dado um aviso de que a torcida na escola tem sido fraca e pedem que os alunos torçam com vontade no jogo à tarde. Na sequência, a gritaria ávida de torcedores fanáticos toma conta do campo em que jogam dois times. A necessidade de manter as aparências, mesmo que internamente as entranhas pareçam fétidas e arruinadas, é exposto ao extremo, descaradamente, para os alunos e nós, espectadores.
É também neste capítulo que rebenta uma das cenas nonsense. Mick e um amigo se divertem na cidade, aliás, a única cena no exterior da escola. Depois de roubarem uma motocicleta de uma loja, Mick e o amigo vão a um café. Lá Mick tenta beijar a balconista e é esbofeteado. Depois, de maneira esquisita, reconciliam-se e se amam selvagemente, imitando tigres, atacando-se com as unhas e se mordendo. Afinal saem na motocicleta Mick, o amigo e a balconista no meio e em pé, como jovens rebeldes depois do amor.
5. Disciplina
A disciplina comedida que deveria manter os alunos da escola é quem oprime e os impele à transgressão. Os coordenadores decidem tomar medidas extremosas e agressivas contra essa transgressão e conseguem obter a permissão almejada. Mick e seus dois amigos são os primeiros.
Essa é a sequência mais tensa e humilhante do filme. Não entendo como Mick se deixa submeter a essa humilhação. Depois de avisados sobre o castigo, são imediatamente levados ao ginásio onde se realizará a punição. Mick e os amigos esperam enquanto um por um é chamado e chicoteado na frente de todos os coordenadores. Durante todo o momento, a cena não recebe cortes e apenas ouvimos os açoites enquanto Mick espera sua vez com um amigo. Mick é o último... e o mais severamente punido. Sua postura insurreta e sarcástica é desmoronada diante dessa humilhação. Lágrimas escorrem pelo rosto. Enquanto os outros dois amigos receberam quatro chicotadas, Mick ultrapassa esse número. Todo mundo escuta os passos que precedem o som dos açoites e todos imaginam a dor que Mick sente. Afinal, Mick ainda deve pedir “obrigado” ao coordenador que o açoitou.
Talvez isso tudo tenha servido para canalizarmos toda nossa raiva para que justificarmos as próximas cenas. A “resistência”, o “contragolpe”, e toda a revolta.
6. Resistência
“Um homem pode mudar o mundo com uma bala no lugar certo”, Mick.
Mick e seus amigos planejam a vingança. Essa vingança pode ser trazida a um contexto mais atual, ao incidente de Columbine. Retificados alguns pontos, a sequência é quase uma predição do que aconteceria em Columbine. De um lado, a humilhação física e psicológica de uma instituição opressora e hipócrita; de outro, a opressão física e psicológica de uma sociedade omissa e negligente. If... é um filme que se estende até os dias atuais de uma maneira quase profética. Pois até o bullying de hoje não é uma conseqüência das mudanças, mas uma herança daqueles tempos.
7. Adiante à guerra
O primeiro sinal de que os rumos convergiriam a um final trágico é dado agora. Alunos e professores simulam uma guerra por entre os bosques da escola, fardados e armados, em contingentes realisticamente estruturados, seriamente comprometidos com as estratégias. Tudo contribui para crermos numa guerra real. Até que Mick e os amigos “desertam” dessa encenação ridícula e arruínam qualquer plano estratégico de seu suposto batalhão. Chega a ser engraçado como a cada novo encontro com o inimigo, Mick e os amigos “morrem” ou simplesmente ignoram a situação. A seriedade depositada nessa simulação chega a ponto de um professor se gabar por ter assassinado Mick e os amigos. Ainda chega a pedir para que caiam, para que se joguem no chão, simulando suas mortes.
O susto vem quando Mick e os amigos assustam, atirando com balas de verdade nos contingentes que descansam, depois de finalizados os exercícios e a simulação. Todos se desesperam e se jogam no chão, exceto o reverendo que os encara e ordena que se desfaçam das armas. Mick e os amigos saem da moita, mas não se “rendem”. Mick aproxima-se do reverendo e aponta a arma para ele. Dispara. O reverendo cai. Pensamos: “minha nossa!”, novamente Mick dispara. E assistindo ao reverendo se contorcer comicamente e se debater no chão, Mick o ataca com a baioneta. Não há sangue, mas... não soube dizer o que viria depois.
Decerto não houve morte, nem ferimentos. O diretor da escola censura Mick e os amigos e após pedir que se desculpem do reverendo, abre uma gaveta de onde o próprio reverendo se levanta para apertar a mão de cada um. Nonsense. Com um discurso enloquente, pronunciado pelo diretor, quase nos convencemos de que um final feliz e compreensível vem por aí. Engano. A punição não é tão severa quanto se imaginava. Mick e os amigos são destinados a um trabalho gratuito, mas simbólico, apesar de necessária a força física. Enquanto Mick e os amigos limpam e organizam depósitos esquecidos da escola, encontram armas e explosivos reais que servirão para o desfecho do filme. Curiosamente, a balconista também os ajuda nessa tarefa de limpeza.
8. Cruzadas
A cena a seguir é o enquadramento da bandeira inglesa esvoaçando austeramente no mastro, repassando uma idéia clara e irônica de patriotismo. E em meio a um formalismo pré-ensaiado, um séquito medíocre recebe o General Denson, figura notoriamente conservadora, que dizem ser um herói da pátria. Também encontramos o Bispo, com todos seus adornos representativos e seu cajado suntuoso na mão. E, por último, o príncipe inglês, trajando uma armadura metálica medieval, com o capacete na mão, numa postura rigidamente ereta. Essas três figuras formam as égides decrépitas do tradicionalismo miasmático inglês e consolidam no filme a idéia de uma sociedade regida por grupos representativos altamente arcaicos e esclerosados. E sob essas égides, se escondem e se glorificam pomposamente os sectários desse tradicionalismo, como demonstram as imagens que se sucedem enquanto o General Denson, já na igreja com os outros, profere um discurso caloroso sobre a necessidade de se manter as tradições. Vemos as faces dessa sociedade geriátrica, as senhoras idosas cheias de adornos, homens austeros, pais e mães dos alunos e finalmente os próprios alunos (que tudo sabem sobre a verdadeira face de sua escola). E essa figura cheia de empáfia e regramentos que é o General Denson não percebe quando, em meio ao discurso, uma fumaça sobe provocando tosses nos espectadores e interrompendo a cerimônia.
Este é o momento-símbolo do filme: Mick e seus amigos disparam suas armas pesadas impiedosamente contra a sociedade arcaica. Todos os significados que não encontramos ou não entendemos no decorrer do filme, se apresenta aqui sem véus nem omissões. É a luta entre o novo e o velho, o confronto entre a nova geração e a velha geração. E a palavra de protesto que se revela nas armas de Mick, contra a opressão, a hipocrisia, a indiferença e até mesmo a corrupção.
Afinal, todos pegam em armas. Senhoras atiram extáticas, clamando por violência, o General Denson, os pais dos alunos e todos os representantes da sociedade. Mick, encarnado por Rambo, atira embevecido com sua metralhadora. E fim.
Mick:
Mick me parece, por vezes, fruto da tapeação e dos erros de cálculo da instituição escolar. Ele não ostenta a singularidade moral de um líder revolucionário nem a mentalidade madura, sagaz, fria e calculista de um grande gênio rebelde. Mas ele parece conservar a frivolidade de um rebelde do rock’n roll, pretensioso e inconseqüente. É por isso que sua natureza não se constitui de uma genialidade autêntica, dos grandes líderes, mas se faz apenas de instintos perceptivos, da capacidade de sentir a opressão e do desejo de alcançar a liberdade aparente. Sua natureza, na verdade, foi condicionada à transgressão, ao desejo de ultrajar regras e conveniências. E a culpada é exatamente instituição escolar e seu desequilíbrio idôneo.
Não digo que o Mick é um personagem negativo, por causa de sua falta de originalidade. Não. Ele é original, sim, justamente na sua natureza perceptiva. E logo que descobre um sistema corrompido e cheio de falhas, torna-se uma conseqüência desse sistema, e aí se encontra a transgressão.
Apaixonado por imagens de soldados, de guerras, de destruição, a parede do seu quartinho particular é adornada com vários recortes de revistas sobrepostos. Essa profusão de figuras, não só bélicas, mas imagens de fome e miséria, de bebidas etc, corrobora para a imagem de adolescente impulsivo que temos de Mick. Nesse mesmo quartinho, Mick e seus amigos fumam, bebem e conversam extravagâncias e trivialidades.
4 comentários:
prometo ler seu blog com mais atenção, qualquer dia.
Minha nossa, que filme!!! Adorei o texto! Cara, subiu pro topo das minhas prioridades. Sempre quis ver, mas nem sabia direito do que se tratava. Acho até que uma carta pra deixar na manga do Dissenso...
Agora, essa frase que você transcreveu sobre a modelo da revista... Parou meu coração por aqui! Qualquer dia vou repeti-la no Ângulo em Mim...
Abraço!
meu bem, por favor não pare de cutucar meu umbigo com o teu nariz! (capisci?)
Como não tinha assistido antes? Filmaço!!!
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