quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Sem paredes

Sem paredes para respirar

Sem paredes para olhar distante

Ver distante, entender distante

Viajar além-mares, procurar a linha do horizonte

Encontrar o que não procuro

E trazer como prova da minha existência

Pedaços de terra e de lembranças


Cliché:

visão idealizada e romanesca de um garotinho enfurnado no quarto, solitário, tecendo um mundo e descobrindo suas naturezas, suas alegrias e suas tristezas, experimentando os frutos proibidos e tomando o veneno que lhe corrói a alma e a força. O garotinho é curioso e tem a necessidade do toque, de estimular os sentidos; experimenta tudo o que a existência tem para oferecer: e recolhe cada informação, cada detalhe marcante, cada imagem e os deposita num amontoado de entulhos cognitivos do seu mundo particular. A tecnologia lhe proporcionou meios, deixou-o sem paredes e sem portas, agora ele pode entrar onde quiser e deixar o que o aborrece para trás, pode espiar tudo, tudo virtualmente. A tecnologia lhe deu papel e caneta; agora o garotinho pode gritar.


Apresento-lhes meu alter-ego:

Meu alter-ego é presunçoso, mas um veemente defensor da liberdade, assim como tantos artistas e revolucionários o foram, assim como lutaram por ela tantos movimentos na História. A Liberdade, tão abstrata em seus sentidos, tão amada, tão desejada e tão complexa. A Liberdade, porém, não define parâmetros. E daí provém as controvérsias. Deus, ao menos, é dogmático: é mais fácil se apoiar nas bordas de suas palavras para seguir na existência. Meu alter-ego, particularmente, é bastante materialista para crer e se sustentar nessas bordas; a metafísica está além da imaginação cognitiva, da compreensão lógica e racional do meu intelecto. Eu não consigo entender além, minha ignorância humana não permite, por isso são outras linhas as quais segue meu alter-ego. Por isso sua objetividade, sua consistência argumentativa e sua convicção quase inabalável quando apoiado em bases firmes.

E, no entanto, meu alter-ego ainda é subordinado a mim. Encontra suas desvantagens por ainda me ser intrínseco, por compartilhar das emoções, do conhecimento, e por se submeter aos meus órgãos para viver. Sim, eu sou o estorvo para ele. Ou talvez ele o seja para mim. Mas... a existência é uma pêndulo multidimensional. E ora eu sou Harry Haller, ora Mozart, ora o lobo, ora o macaco, ora algum outro elemento coexistente em mim. O que faço? Ponho-me a frente do espelho mágico para me desfazer em minhas mil personalidades, as mil personalidades que compõem o homem? O espelho apresentado a Haller para que se desmanchasse e se desfizesse de sua aparência una para conhecer com outros olhos, ou com olhos incipientes, a criação da vida, da personalidade, do eu. Mas eu não me permito adentrar no Teatro Mágico. São meus medos, minhas dissidências, minha inexperiência e minha subordinação.

Meu alter-ego, porém, poderia ser livre.

Quantos artistas não inverteram as existências para desdobrar o alter-ego?

Se eu, então, crio um personagem e ele é um poeta, onde haveria de situá-lo meu alter-ego? Quem contextualizaria a estória? Quem apresentaria a problemática? Sobe o que se trataria e quem discorreria sobre o tema? O meu poeta não seria meu e estaria na corda banda das ideologias.


Meu Poeta: Há um mundo de lugares para ir, mas ele não pode se esconder em nenhum deles. No entanto, não lhe escapa dos dedos o lodo viscoso da existência, os versos sujos entremeados de pedras e cristais que compõem a poesia da vida. Ele sabe que as palavras não brilham por estarem enlameadas. Vez ou outra, uma cintilância relampeia secreta e rarefeita, sufocada. Enquanto recorta os papéis para desenhar neles a vida, fragmentada, desvencilhada, derrama a tinta sobre o chão e os papéis; o negrume pastoso e denso espalha-se devagar, pusilânime - a existência é marcada.

Não recorta a vida em partes da evolução para embaralhá-las; o que ele faz é uma translineação descontínua da vida. Ele quer entendê-la, ciente de sua ignorância. Por isso, tenta desmontá-la, como Tarkovski desmontaria o relógio e tiraria suas peças para compreender seu funcionamento.

Sua tensão ao escrever é exasperante; faz friccionar a vida e dela se desfaz pedaços de isopor que voam tremulantes, sensíveis ao vento. Ele tem mil palavras acessíveis e nenhuma delas o exprime. Ele escreve como cingisse a roupa molhada e o excesso de água no balde é o precipitado de idéias que ele é. Mas suas idéias fundem-se num único elemento lá dentro. E constituem o que Weber chamaria de "tipo ideal". Ele, no entanto, ainda é um precipitado de idéias.


Isto não é uma parábola:

O poeta existencialista tem problemas existenciais. Fragmentos de vida estão espalhados sobre sua mesa, e meu poeta brinca com a tinta enquanto não lhe rebentam da mente os versos perfeitos que traduzem estésicos a existência. A revelação, pois, nunca é uma epifania grandiosa, divina, e mais uma vez decepção sopesa sobre o poeta a concretude da realidade, onde tudo é ríspido, e as emoções, atenuadas. A alma decepcionada prostra-se numa melancolia voluntária - e meu poeta desvanece e tenta sucumbir para dar vazão à enlevação das sensações, transcendê-las e senti-las culminantes, pulsantes, vivas em seu corpo.

Meu poeta é uma chaga da existência, está perdido em suas dúvidas e as respostas ocultam-se a sua frente para o desafiar e zombar de sua ignorância. Meu poeta rabisca os papéis em branco, porque suas poesias transcrevem sensações, e as suas são emaranhados herméticos de perguntas sem respostas sobre a existência. Suas sensações se confundem, não possui mais a estésica visão do mundo e da vida e então ele rasga os papéis, mistura-os, embaralha-os e encontra neles o abstrato da poesia que traduz introspectivo sua existência. Não há respostas ontológicas nem epistemológicas para suas dúvidas existenciais, no entanto meu poeta descobre que o segredo que impulsiona a filosofia é perguntar e não responder.

Um comentário:

nando disse...

Muito contente por começar esse novo contato com o garotinho. Que o papel e caneta da tecnologia lhe sirvam com honra e lhe ajudem a perguntar mais, a descobrir mais anseios e, claro, a extrair mais dos sentidos o que eles pedem e clamam gozar.
Bom ter um novo lar...