sexta-feira, 14 de outubro de 2011

conversas com renato sereno.

tentando dar algum destino a estas reflexões que, sem rumo, acabam como lixo eletrônico no fluxo de atualizações do facebook, resolvi assentar-lhes um lugarzinho pacato neste blog deserdado:


1. meus livros têm o péssimo hábito de me desaparecerem do quarto. disse isso a renato sereno hoje mais cedo. me respondeu que por não ter o costume de ler desconhecia os hábitos secretos dos livros. mas me recomendou apropriadamente uma arrumação no quarto, pois assim não correria o risco de extrapolar os limites da razão, evitando a suposição de inconvenientes fantásticos, como duendes, passes de mágica, bruxaria e coisas de natureza esotérica. tive de concordar, mas quase não resisto à vontade de lhe dizer que ele mesmo não passava de um produto da minha imaginação, ou da loucura (como gostam os psiquiatras e iluministas).

2. hoje, tomava café com renato sereno, quando começou a chover forte do lado de fora. onde estávamos, podíamos ouvir a surda queda d'água nos telhados do estabelecimento, o fluxo que escorria pelas calhas, formando magras cachoeiras nas extremidades. ainda não tínhamos dito nada um ao outro, exceto um comentário discreto sobre a previsão do tempo. nada mais, nenhum cumprimento. um velho, ao nosso lado, pelos grisalhos espalhados por toda cara, disse, alheado e para ninguém: "êta, vai chover!". comentário que me surpreendeu bastante, mas não tanto a renato, que está sempre alheio ao mundo e indiferente às filosofias mundanas. pensei, para além da obviedade dos fatos: ora, chove, como vai chover? e lembrei instantaneamente um trecho de enrique vila-matas contido num bloquinho de notas meu que coleciona comentários famosos sobre o tempo. dizia algo como: "sempre que chove é uma coisa que acontece no passado - creio que um poeta argentino disse isso". contei a renato sereno tudo isso, mas não acho que deu importância. disse apenas que estávamos diante de um louco. mas que o louco não estava menos errado que o tal poeta, afinal. e eu conclui: chover é algo no porvir, que já passou. é qualquer coisa da teoria de bergson. portanto, não chove nunca. ora, chovia, mas não abri meu guarda-chuva ao ir embora.

3. hoje tive uma experiência no tempo. renato sereno diz que não. assim devem concordar Amanda Beça e Alan Tonello, que testemunharam o acontecimnento banal e não souberam perceber a fançanha cósmica inextricável que nos concebeu o universo. estava eu na parada de onibus e esperava cdu/ bv / caxangá, que já tinha visto mais atrás, numa fila de carros e outros ônibus, quando me virei e vi amanda e alan, acenando. ponderei se deveria me aproximar e cumprimentá-los, já que logo mais subiria no ônibus, que se aproximava lentamente por causa do congestionamento. decidi ir até eles. a experiência, invisível mas inquestionável, se deu a partir desse ato banal, durante minha caminhada. aqueles passos não me conduziram somente através da calçada, mas através do tempo. quando cheguei, nos cumprimentandos e, tendo perguntando que ônibus eu pegaria, respondi cdu... ao que me disseram: 'olha aí, rapaz, do teu lado'. impossível! pensei eu. desmentiu-me o fato, mas negligenciei a razão: me nego a assumir minha leseira e displicência: digo que não foi só um deslocamento no espaço, foi sobretudo um deslocamento no tempo! quem negará?

4. incipiente crise de agorafobia em atravessar largas avenidas movimentadas, escassa habilidade em me desvencilhar de vários problemas simultâneos, insegurança pessoal e profissional, baixa auto-estima, impasses literários e frequentes bloqueios criativos, cinefilia, bibliofilia, masturbação e masturbação intelectual que me encerram cada vez mais num estado de solipisismo agudo, desejos frustrados, ...crises excruciantes de ansiedade, a situação duvidosa do sport na competição, perspectivas futuras para arte e cultura em geral, últimas decisões políticas, crise epistemológica das ciências, quantidade cada vez maior de leituras bíblicas e de auto-ajuda em ônibus, são estresses e inconvenientes que me deprimem e minam minhas relações sociais e afetivas. tudo isso desabafei a renato sereno hoje mais cedo, e conjecturei que tais problemas talvez justificassem minhas conversas falseadas com seres imaginários. recomendou qualquer terapia; ou que visitasse um psicanalista. respondi que não, que desconfiava dos psicanalistas. são sociopatas formados em universidade, conclui.

5. o ônibus demorava, e eu conversava com renato sereno na parada. contava a ele sobre o sonho do dia anterior, um desses sonhos em que você acorda e se pergunta se realmente aconteceu ou não. acontece frequentemente comigo. mas o que me incomodava não era a dúvida e a posterior certificação do que não era fato, e sim sobre do que se tratava o sonho. sonhara que tinha telefonado pra alguém pra confirmar qualquer coisa, porque na noite passada fui dormir com essa obrigação e portanto tinha me demorado pensando nisso. disse a renato que odeio falar no telefone porque nunca sei bem o que fazer, nunca sei o que dizer primeiro, se cumprimento, se me anuncio, se espero primeiro um alô pra depois me pronunciar. mas o que mais me incomoda é o inconveniente de me identificar, 'sou eu, renan'. perguntei a renato se não sentia o mesmo, se não achava estranho dizer: "sou eu, renato". com sua negativa, me pus a me justificar. quem sou eu e que propriedade tenho para me identificar como renan? quem é renan? um nome basta para compreendê-lo, as palavras de nosso vocabulário impreciso? como posso ter tanta certeza de que eu sou renan, ou vice-versa? ou se não fui dormir renan e acordei outro, sei lá, álvaro, josé, ou mesmo renato. nessas horas me cai a ficha e eu passo em revisão tudo que fui, tudo que penso que sou e tudo que pretendo ser. é uma dessas perguntas que a gente faz, sentado na varanda, numa noite solitária de lua cheia e amarelada (o cenário romântico é indispensável pr'esse tipo de questão filosófica). quem pode me garantir e garantir a si mesmo de que, do outro lado da linha, sou eu, renan, ou aquele, renan, que falo, ou fala? posso muito bem responder, e já tive vontade de fazê-lo, 'sou eu, mariana'. e você perguntaria, assim como renato perguntou: quem é mariana? e eu respondo: quem sou eu? uma pergunta equivale a outra. afinal, sou o quê? um preciptado de ideias que faço de mim e de opiniões dos outros? (é inevitável a alusão a Fernando Pessoa). um pêndulo ciclotímico de estados psíquicos e de humor? vai saber. um dia, eu, um dia, aquele, e assim por diante. e então renato me respondeu, sorrindo: 'você não existe'. o que me intrigou bastante porque, se ele não existe, eu que o inventei; mas se sua afirmação procede, e eu não existo, sou uma invenção dele, que por sua vez é uma invenção minha. e não faltaria aqui a alusão às ruínas circulares e seus personagens sonhados de sonhos sonhados de outros sonhos e assim por diante. calamo-nos. refletia sobre isso quando o ônibus chegou. o cobrador se aprontou logo em dizer: 'demorou pq tá tendo show no marco zero'. eu fui embora e não me despedi de renato.

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