domingo, 7 de agosto de 2011

Moonwalkman (ou A história do discurso ausente)

But what matter whether I was born or not, have lived or not, am dead or merely dying, I shall go on doing as I have always done, not knowing what it is I do, nor who I am, nor where I am, nor if I am. Yes, a little creature, I shall try and make a little creature, to hold in my arms, a little creature in my image, no matter what I say. And seeing what a poor thing I have made, or how like myself, I shall eat it. Then be alone a long time, unhappy, not knowing what my prayer should be nor to whom.


(Malone dies, Samuel Beckett)

Conta-se que quando veio ao mundo, não se incomodou em chorar. Viu aquele clarão inédito e indefinido, as sombras que mal se conformavam aos contornos, aqueles corpos estranhos que de repente começaram a fazer ruídos, e não sentiu deslumbramento. Não riu e só chorou quando o enfermeiro lhe despertou as lágrimas com um leve tapinha na bunda. Conta-se ainda que em sua infância plantava-se no quarto e olhava o teto, o ventilador que girava e fazia a sombra das hélices dançarem, passava o dia ensimesmado e não havia quem o tirasse daquele estado de letargia, não havia quem lhe chamasse atenção, e só despertava quando os pais reclamavam a tarefa de casa. Não deu trabalho, não era curioso e carecia de imaginação para traquinagem. Tinha amigos, brincava na rua, não era afeito a corridas e costumava ser o primeiro desistir da brincadeira e dos jogos. Voltava para casa e ninguém insistia que ficasse, habituados que estavam àquele espírito inerte e sedentário. Não o assustava Deus, a religião, os espíritos malvados, as estórias de terror, o desconhecido, a velocidade dos carros, o reflexo no espelho, as notícias de jornais. Também não tinha medo de dormir fora de casa, na casa dos amiguinhos, mas é que não o apetecia, preferia não fazê-lo. Não se sabe quantas vezes se apaixonou, nem quantas namoradinhas teve enquanto criança, mas conta-se que invadia a casa do vizinho, ele, outro pirralho e a amiguinha, e cada um beijava a garotinha com toda inocência que se permite conceder a essa idade primeira. Cresceu e não colecionou muitas histórias, talvez não pelo espírito desdenhoso de aventuras, apático ao mundo, como se pensa por aí – e não se pensa de todo errado, pois carecia mesmo de curiosidade –, mas por discrição e sutileza.

Um caderninho marrom, de capa dura, envelhecido por estilo e não pelo tempo, guardava escritos seus. Não há quem tenha se aventurado em páginas tão curiosas e voltado para contá-las. Mitificaram-nas então. Mas conta-se que eram escritos inconclusos, versos inacabados, não encadeados, não coordenados, diário pessoal da necessidade mundana de registrar cada segredo, cada pequeno detalhe, cada pequena aventura, cada ilógica reflexão. Não fazia nada, de onde se conclui que não registrava aventuras; observava, mas instado a descrever o que via, não via nada – tinha os olhos abertos, mas não via nada; e se não via nada, pensava, refletia, ensimesmado, não que aspirasse ao título de filósofo, mas pela inevitabilidade do ato involuntário. E, seja por discrição ou preguiça, jamais participava a ninguém o que se lhe passava na cabeça. Seu caderninho marrom, entretanto, sempre em mãos, sempre a postos, enquanto criança. Na sala de aula, metia-se em devaneios, abstraia-se; passado algum tempo, abria o caderno e rabiscava segredos e mistérios inauditos de sua imaginação infértil. O que se escrevia, no entanto, é uma incógnita. Conta-se, aqueles que passaram os olhos por cima, que se viam rabiscos, traços, linhas curvilíneas que não formavam desenho algum, eram apenas formas abstratas, traços que percorriam e contornavam o vazio do seu pensamento. Outros contam ter visto versos e palavras espalhados por toda a página, não por ideal concretista, mas pela distração da mão que escrevia, da cabeça flutuante, dos olhos perdidos por aí. As palavras, no entanto, não se liam, seja por não se reconhecer a caligrafia, seja por não encontrarem significado; palavras que, se existiam ou não, não se sabe, eram crianças e guardavam escasso vocabulário. Contam que juntava as letras, aleatoriamente, consoantes e consoantes, cadeias de vogais, não importava, de modo que não formavam palavra alguma, nem fonema, nada que se pudesse ler em voz alta. Mas podiam jurar que, por trás daquelas incógnitas palavras, ressoava a história do universo, uma história inaudita, fantástica, infinita, e só aquele que se despojasse das bitolas e das limitações da nossa língua conseguiria proferir tais palavras.

A história que aqui se narra também não se pode contar, a menos que aceitemos suas incontornáveis limitações, porque não tem fim nem começo, ao contrário do que indica o ponto final. As palavras parecem ter o incrível dom de reverberar para além das páginas, se reformulando e dando novos desdobramentos à história. Mas nosso inigualável herói, Renato Sereno, prazer, é bom apresentá-lo devidamente, é só um ponto na História do homem, é um trajeto circular e, portanto, um caminho que parte de lugar algum a nenhum lugar, uma paisagem que se repete, ou não se move. Renato Sereno é uma projeção cinematográfica, um rolo posto para girar eternamente na moviola e cujas extremidades foram coladas entre si. Como no cinema primeiro, a fascinação pelo movimento sutil das coisas, pela projeção e reprodução do tempo. Renato Sereno não faz parte de um tempo que se repete, mas um tempo que se desloca do tempo dos homens e se torna eterno pela infinitude do círculo. Tal história fantástica não poderia ser contada porque a necessidade a dispensa e porque a língua não a compreende. Seriam necessárias as palavras inventadas pelo próprio Renato Sereno para contarmos sua história, de onde se conclui que só ele poderia contá-la e, para isso, seria preciso que ele mesmo se inventasse, como uma mão que se escreve, uma compressão enérgica, uma implosão do universo, um big bang humano, ou de palavras. E é bom advertir: não se pode acreditar na história de Renato Sereno, porque ela só se sustenta através das palavras, que, no entanto, são frágeis e limitadas, faltam com a verdade e invalidam, por conseguinte, o que elas mesmas contam. Portanto, não se pode acreditar nas palavras, mas no que elas se desdobram nos olhos de quem lê, no que reverbera, no que cresce na alma. Esta história se escreve por si só, é Renato Sereno quem a escreve, as palavras irrompem e não há quem me desminta minha própria história.

Não se pode contar a história de Renato Sereno porque sua história é a história das coisas, de sua geometria, de sua ontologia, do espaço em expansão, da ilusão da perspectiva, da disposição dos objetos no espaço, o que se projeta para os olhos, ou o que é projetado pelos olhos. O que se pode contar de Renato Sereno é que ele descansava na pracinha perto de sua casa e se punha a observar as coisas, intrigando-se com a disposição triangular dos postes espalhados pelo local para se decepcionar logo após concluir a impossibilidade de eclipsar a luz de um deles pelo outro através da perspectiva. Por mais que perambulasse de um lugar a outro, as luzes nunca obstruíam as outras, nunca se alinhavam ao eixo dos dois olhos. Pode-se explicar sua causa através de desenhos e explicações geométricas, pela insuficiência do tamanho de Renato Sereno comparado ao do poste, mas basta dizer, sem deixar de ostentar certo teor filosófico e sem dispensar a matemática e as leis insubstituíveis de Newton, que os dois olhos não eram um só, não ocupavam o mesmo espaço, ainda que partilhassem a mesma cabeça.

E entre as crianças que corriam e brincavam, saltitavam, os gritinhos agudos de choro, de riso ou de raiva, entre as bolinhas de sabão que piruetavam ao sabor do vento, sob as luzes do poste e a lua que nascia no horizonte, amarela, cercada por uma aura dourada, quase mística, e um mar que insistia no seu encontro com as pedras, com a terra, que ressoava um rumor antigo, muito antigo, que vinha desde milhões de anos atrás, Renato sentava na praça, observava os postes, o espírito inerte, os olhos perdidos, devaneados, a carência de curiosidade e a negação de toda poesia que inevitavelmente aludia toda essa paisagem, todas essas imagens. Renato não era poeta, nem poderia sê-lo.

Também não é errado dizer que a história de Renato Sereno pode ser substituída pela história de sua biologia, de sua anatomia, pelo diagnóstico médico e pelo fluxograma. Pode-se falar dos seus batimentos cardíacos, mas não por que e por quem seu coração bate; não se pode falar dos seus sentimentos porque, seja por sua discrição, ou apatia, desconhecemo-los. Seu sangue ferve por uma troca natural de calor com o ambiente, ou porque seu corpo reconhece a invasão de corpos estranhos, mas não porque está com raiva ou nervoso. De Renato Sereno não podemos falar com metáforas. E de seu nome, apenas que seus pais escolheram por obra do acaso, e, como todo bom acaso, não se explica nem se calcula.

O leitor, no intuito de descobrir mais sobre Renato Sereno, vê-se no direito, concedido por mim, é claro, de fazer-lhe algumas perguntas, às quais me antecipo desde já e evito assim, num gesto afoito e pretensioso mas de boa vontade, o incômodo póstumo:

- Religião?

- Não sei.

- Não tem religião?

- Católico, eu acho. Nunca pensei nisso.

- Seus pais são católicos?

- Sim. Não praticantes.

- Acredita em Deus?

- Nunca parei pra pensar.

- O que acha de Deus, do Paraíso, do Juízo Final, da vida após a morte?

- Nunca parei pra pensar sobre essas coisas.

- Na morte, já pensou na morte?

- Não me lembro.

- O que acha da morte?

- Não sei.

- Já pensou em suicídio?

- Não.

- O que pensa sobre acabar com a própria vida, com os sofrimentos, com as dores, se antecipar ao destino?

- Não sei. Parece interessante.

- O que acha da vida?

- Não sei se entendo suas perguntas.

- Viver, o que acha de viver? Andar por aí, ver TV, ter amigos, jogar futebol nos sábados à tarde, se casar com uma mulher, ter filhos, ir à igreja nos domingos, talvez frequentar boates noturnas, ou prostíbulos, acordar todo dia e se olhar no espelho, arrumar um trabalho, sustentar a família... essas coisas. O que pensa disso tudo?

- Parece cansativo.

- Mas não é mais ou menos assim que você vive seus dias?

- É.

- Então, o que acha disso?

Renato Sereno se cala, temos a impressão – mas só a impressão – de ter meneado a cabeça, um movimento reticente que confunde o sim pelo não e não sabemos, afinal, o que quis dizer. Não olha nos olhos, hesitamos se devemos avançar. Pelo sim, pelo não, sinto importuná-lo, e digo, como que para concluir, mas procurando avaliar sua resposta para descobrir se devo ou não continuar o arbitrário inquérito:

- Você me lembra um personagem de Melville. Bartleby.

- Não conheço.

Arrisco, por fim:

- É um bom livro, posso emprestar a você. Quer?

- Não gosto de ler.

Calemo-nos. Renato Sereno gostava da matemática, ainda que tivesse muita dificuldade em calcular corretamente os números da equação. Teimava em escrever dois mais dois igual a cinco. Forjou um novo teorema que, não tendo superado o Grande Enigma de Fermat em mistério, confundiu ao menos os colegas de sala e o professor de matemática, que de imediato considerou impossível e o anulou, sem, no entanto, identificar no argumento equacional de Sereno que equívoco o invalidava. Renato Sereno gostava também dos números imaginários, mas nunca soubera aplicá-los.

***

Acorda pela manhã e se rende desde já à cama; sua mãe o chama e avisa que o café está na mesa, escuta a descarga no banheiro, o chuveiro e depois o roçar na escova de dentes, é sua irmã que sempre levanta primeiro; seu pai escarra e cospe, escarra e cospe, espirra, sempre acorda com crises de rinite alérgica; os raios de sol teimam em se infiltrar pelas frestas da cortina; quanto mais se escorre o minuto, mais se torna frequente o ruído de carros e ônibus na rua. Fecha os olhos e, admitindo sua falta de imaginação, supomos que imagina o que virá a seguir; imagina sua mãe na cozinha, olhando distraída vez ou outra o relógio na parede, quebrado, marcando eterna 1h35, o segundo inerte; imagina a pasta e a escova de dente, a água em redemoinho na pia do banheiro, sua irmã na frente do espelho com o eterno pente na mão; imagina o sanduíche na mesa, contempla-se ao mastigar, ao engolir, espera o alimento atravessar o esôfago e imagina um ponto luminoso no seu órgão; seu estômago então ronca, é hora de atendê-lo, mas não ousa mexer um dedo e só o move porque faz disso um desafio contra a preguiça. Contempla-se no espelho e talvez se pergunte o que mudou de ontem para hoje, se virá um dia a surpresa de não se reconhecer no reflexo, ou se um dia se livrará desse hábito narcísico. Vê passar o ônibus na parada distante e, sem olhar o relógio, se descobre atrasado para a aula; tem as mochilas nas costas e se põe a andar, não – nunca – acelera os passos, não tem pressa e faz uma parada na moça do café. Na escola, recebe uma advertência, e ninguém percebe quando um garoto alto e um tanto desengonçado entra na sala, no início da segunda aula, e se senta numa banca qualquer, nem no fundo, nem na frente do quadro, nem no canto da parede, na terceira fileira da segunda coluna de um sistema de coordenadas seis por cinco. Torna-se indistinto entre tantos rostos; desaparece.

Renato Sereno é, portanto, um desconhecido, com todas as questões existenciais a que o termo alude. Mas ele mesmo nunca se importou com a metafísica do termo. Estudou a vida toda numa só escola e, no último ano antes da formatura, seus professores ainda não sabiam seu nome. Comportava-se bem, era discreto e nunca teve sua atenção reclamada, exceto quando um dia seus coleguinhas de sala o acusaram das bolinhas atiradas em direção ao quadro. Solicitado a sair de sala, sempre distraído, não percebeu a picardia dos colegas e cedeu, não como mártir, para tomar a culpa dos outros, mas porque pensava se tratar de um favor para o professor. Dirigiu-se à coordenação, mas como tivesse se esquecido de perguntar do que precisava o homem, não quis voltar por vergonha e se abandonou pelos corredores. Terminada a aula o professor foi à coordenação, não o encontrou, esqueceu-se dele. Nunca mais voltaram a importuná-lo.

Certo dia no ônibus, voltava do colégio para casa, era noite. Um congestionamento deixava a avenida intransitável, prolongando sua viagem por cerca de duas horas. No meio do caminho, vários passageiros se levantaram de suas poltronas para sondar pela janela uma tragédia da qual participavam alguns automóveis e umas vítimas. Renato Sereno, naquele mesmo ônibus, sentava-se distraído, enquanto as pessoas se amontoavam ao seu lado e se inclinavam para ver melhor. Chegou em casa e seus pais, preocupados, perguntaram por que a demora. Um congestionamento, respondeu, ah, deve ter sido aquele acidente que deu na televisão. Não sei, respondeu e se sentou na mesa para jantar – Renato Sereno não vira nada.

Por vezes, voltando à noite do trabalho para casa, penso em Renato Sereno. Assaltam-me vozes, muitas delas, penso no meu conto, socorre-me meu bloquinho de notas e entre solavancos e tantos me ponho a escrever. Mas as palavras, traiçoeiras, me escapam, escorrem-se pelas mãos como água, ou evaporam e se expandem, ou porque são muitas, ou porque querem dizer muita coisa ao mesmo tempo. Dispenso o bloquinho e me ponho a observar a cidade pela janela, tento imaginar Renato Sereno, naquele mesmo ônibus, os olhos devaneados, perdidos, a cidade através dos seus olhos, o rio sob a ponte, as luzes e os pontos luminosos ao longe numa dança serena entre galhos de árvores, entre frestas e janelas; os ruídos dos carros, o rangir do ônibus, a moça ou o rapaz da vez que senta ao seu lado e parte, sem percebê-lo, nem vice-versa; e a noite que se estende ao infinito, como se estende ao infinito a distância que tento percorrer para alcançar Renato Sereno. Conto para mim essa mesma história, esse mesmo devaneio e tento imaginar o que imaginava aquele jovem rapaz indistinto, o que o incomodava, o que se escondia naquela alma misteriosa, naqueles olhos serenos, nos seus lábios surdos. De imediato cesso minha imaginação, que me escapa como pensamento, por medo de ultrapassar o que eu mesmo delimitei como fronteira entre mim e Renato Sereno. É-me inconcebível agredir tão puros pensamentos, confundi-los, torná-los meus, trazê-los à tona de um passado alheio para um agora só meu. Limito-me ao reflexo nos seus olhos, às coisas que resplandeciam em sua pupila e escapavam para contar a outros o que parecia ver.

Mas quando falamos de alguém, sempre tomamos um pouco dela para nós, ao mesmo tempo em que nos tornamos um pouco dela.

Nunca tive muitos amigos, e não se pode dizer que Renato Sereno foi um deles, mas me agradava sua companhia. Era como um relógio vagabundo quebrado no seu pulso. Costumava encontrá-lo no café na praça perto de onde trabalhávamos. Sentava sozinho, numa das mesas, até que nos conhecemos, graças a um desses acasos imemoráveis. Eu, tímido, e Renato, calado. Não tínhamos nada a dizer um para o outro e ainda assim sentávamos juntos; eu, com meu cigarro, Renato, sorvendo o café, olhos devaneados, perdidos. Uma ou outra pergunta sobre o tempo, a notícia do dia, a última partida de futebol. Renato se interessava por futebol; tinha o jornal sempre aberto na página de esportes. Não tinha time, mas sabia da situação de cada um, de todos os resultados, de todos os próximos jogos, da última contratação. Partilhava suas informações numa cartilha, copiava uns números, resultados de jogos, datas, coisas que eu não compreendia e não me interessavam, já que nunca gostei de futebol e só comentava por falta de assunto, ou porque muito escutava por aí. Nos últimos anos, ficávamos calados, nenhuma palavra, Renato com seu café, eu com meu cigarro; abria o jornal, fechava, deixava na mesa e voltava ao café. Despediamo-nos e partíamos em rumos diferentes. Cheguei a visitá-lo em casa, algumas vezes, e o encontrava com baralho na mesa, as cartas espalhadas, e um silêncio que anuviava a alma. Jogava Paciência e não se interessava por computadores. Às vezes, encontrava uma mesinha de madeira armada, um tabuleiro com peças de xadrez dispostas cada uma na sua casa, e um só banquinho, no qual, supunha, Renato sentava.

Lembro um dia, enquanto fumava no café, esperando sem esperar, pois não marcávamos nada, apenas nos esbarrávamos na mesma hora, Renato vinha debaixo de uma chuva fininha mas insistente, os passos apressados, esquivando-se dos carros, os óculos polvilhados de gotas minúsculas e, debaixo do braço, o guarda-chuva fechado; vinha curvado, protegia o jornal e sua agenda, atravessou a rua e, ao seu lado, a avenida num congestionamento que se estendia além de onde a vista permitia. Lembro vagamente de sua silhueta frágil em meio àquela paisagem cinza e nervosa, as nuvens acima num só clarão, frágeis, esbranquiçadas, que os raios de sol tentavam à força atravessar. Sentado na minha mesa, vi Renato entrar, todo molhado, apesar da chuva fraca, as mechas de cabelo coladas no rosto, enquanto lhe escorriam pequenas gotas de água. Aproximou-se, me cumprimentando, escanteou o guarda-chuva no canto da parede, em cima da mesa, depois sua agenda e o jornal, e se sentou. Com papel guardanapo enxugou as poucas gotas do guarda-chuva, depois o rosto, mas se decidiu por levantar e ir ao banheiro. Achei graça, mas não percebeu; não comentei nada. Conversamos sobre política, o placar da última partida, a desclassificação da seleção brasileira na Copa America, o não cumprimento da nova lei que proibia a cobrança de estacionamentos, minhas dores nas costas, meu casamento recém-acabado (sobre o que falei pouco), mas nunca perguntei por que se deixou molhar todo, se tinha debaixo dos braços um guarda chuva em bom aspecto. Em silêncio, como sempre acontecia no final dos nossos encontros diários, ou como quase sempre acontecia durante todo o encontro, pois raramente falávamos, ou falávamos esporadicamente, deixei que escrevesse em sua agenda, fizesse suas anotações numéricas na cartilha, enquanto eu fumava o sexto ou sétimo cigarro.

Um dia, enquanto nos estendíamos um diante do outro na mesma mesa de sempre, Renato Sereno bebericava o café e rabiscava sua cartilha, fazia contas, eu fumava o cigarro, perguntei, a propósito de não sei que notícia do jornal,

- acredita que se pode prever as coisas através dos números, do mesmo jeito que se pode calcular uma equação?

E respondeu, com inalienável humildade, mas não sem certo mistério e sabedoria:

- Talvez. Se conseguirmos prever a variação dos termos, as variantes, estabelecer coeficientes etc; mas isso nos levaria a outra equação. É como tentar encontrar a posição exata do elétron no átomo num determinado instante.

Lembro desse dia depois do café. Eram dias de chuva, e as palavras faltavam não por escassez de assunto, mas por reverência ao silêncio e à paisagem. Seu guarda-chuva no braço, dessa vez Renato não estava molhado como no outro episódio quando chegara encharcado em posse do mesmo guarda-chuva. Acho que dessa vez não tomamos rumos diferentes assim que saímos do café porque atravessamos juntos a avenida congestionada. Não sei aonde poderíamos ter ido, mas depois que atravessamos não devemos ter continuado lado a lado por muito tempo. Eu tinha acabado de jogar fora um cigarro e já buscava outro na carteira no meu bolso. Renato nem se importava. Perguntei, com alguma coisa de boa educação, se aceitava um e respondeu que não, obrigado. Acho que voltávamos pra casa, não tínhamos outro lugar pra ir, eu e ele. Andava com seus passos quase involuntários, conduzidos mais pela necessidade de locomoção que por vontade própria, função primeira dos órgãos locomotores dos heterótrofos, e não ia em busca de qualquer objetivo essencial, só a solidão de sua casa, a luz tênue do fim da tarde e talvez a televisão ou o som de fora, a chuva, os carros, as crianças, os primeiros bêbados, que lembravam um mundo maior e mais rigoroso. Renato e eu esperávamos para atravessar a avenida. Lembro que desviávamos das poças de lama. Fazia algum tempo que chovia sem parar, não lembrava a última vez que vira o sol. Chovia, estiava, mas as nuvens condensadas, plúmbeas, não se dispersavam. Escurecia no fim da tarde e as nuvens tornavam-se rosadas, e o dia parecia claustrofóbico. Não sentíamos frio, no entanto. Renato era friorento, mas o vento não corria pelos espaços abertos e interstícios entre prédios. Um grupo de jovens amigos compunha a fila única de um cinema sobrevivente do bairro, não lembro o filme, mas fazia parte do que chamavam sessão de arte. Não havia pipoca. Admitimos sempre um abismo entre gerações a partir de pequenos detalhes, mas meu tempo e o tempo deles se encontravam neste ponto: não comíamos pipoca no cinema. Eu fumava e o cigarro entre os dedos se consumia e se servia de metáfora da minha existência. Ao lado de Sereno, esse ser inerte e quase irreal, essa projeção incólume, esse fantasma, e dentro dessa paisagem cinzenta e metafísica, apesar dos objetivismos, eu me sentia desesperado, talvez porque soubesse voltar sozinho para casa e não encontrar ninguém, nem minha mulher, nem meus filhos, nem minhas lembranças felizes, nem os livros lidos. Renato, eu acho, não se importava, talvez não soubesse lidar bem com isso, mas não se importava. Era um bom amigo, talvez, mas talvez não se importasse devidamente. Carecia de curiosidade. Aqueles olhos perdidos, devaneados. Seu guarda-chuva, seu jornal, sua pasta de couro que guardava sua agenda e sua cartilha e outros papéis concernentes ao trabalho. As pessoas ao nosso redor, o grupo de jovens e seus sorrisos, os casais de namorados, mas não só a nostalgia de um tempo semelhante que já me pertenceu, mas as crianças nos braços da mãe, os solitários e as sacolas de compras, as senhoras desgastadas, as lanchonetes, as televisões ligadas, os mundos que não me pertenciam, que não tinham nada a ver comigo, mas que eu sabia que existiam. Mas nada disso importa, tento apenas enfeitar a imagem, preencher lacunas, colorir e redefinir detalhes; corro o risco do excesso, mas é de pouco que se faz muito. O que importa é que, enquanto acendia um novo cigarro, esperando o sinal fechar para atravessarmos, não sei por que mas me dei conta pela primeira vez de que Renato nunca perguntou por que eu fumava, por que sempre fumei, desde que o conhecia, desde antes, muito antes, desde antes do casamento, na minha adolescência corriqueira.

Começo a me confundir com Sereno; começo a confundir meus passos aos deles. Depois do fim, quando finalmente desapareceu, passei solitário minhas tardes disponíveis no café. Quando tirei férias, decidi procurar por Renato, caminhar sobre sua história, seu passado. Fui a sua cidade natal, pois não era daqui. Não sei como nos conhecemos, não sei a que acaso se deve. Renato Sereno não fazia as coisas acontecerem, ele não movia as peças, e, talvez por uma tendência newtoniana das coisas em permanecer em repouso, as coisas dificilmente aconteciam a ele. Mas, um dia, graças a um desses acasos extraordinários que fariam um sorteado na loteria, ou um mergulhador encontrar uma das caixas de chá atiradas ao mar durante o episódio da Boston Tea Party, e que eu mal percebi, Renato Sereno e eu nos conhecemos. Não descobri muito sobre ele, só o que me contou vagamente, com parcos detalhes, concedendo pouco ou nenhum interesse, e sempre se desviando do assunto, quando simplesmente não se calava para evitar mais perguntas. Eu não insistia, as perguntas se faziam não por curiosidade, mas pela lógica da conversa, sei lá, pela boa educação; eram perguntas também muito vagas, que não demonstravam qualquer interesse no assunto a que se referiam. Soube que seus pais também desapareceram, deixaram de existir. De modo que boa parte de minha investigação se deu à imaginação e às minhas próprias lembranças. Comecei a agir como Renato Sereno, não me interessava falar, agir, fazer; me olhava no espelho e reconhecia Renato. Não era um rosto ao qual estava habituado.

Renato falava de uma vaga lembrança que vez ou outra o afligia nos sonhos e no pensamento. Encerrado no banheiro, num silêncio que o isolava de todas as formas da rotina, e ainda assim dentro dela, o banheiro como capsula de preparação, a pasta de dente e a escova derrubadas na pia, enquanto sua mãe provavelmente descia o prédio com o cachorro, hesitava se devia ou não acender a luz, tomar banho e acabar de vez com a indolência de seu corpo. Lembra-se de tudo isso muito vagamente, e sua incerteza só não o desmentiu porque todos os dias se repetiam assim na moviola eterna de sua vida. Era uma lembrança falha: contemplava-se no espelho, num dia como qualquer outro, e pensou ter reconhecido no reflexo o rosto de alguém de quem não conseguia se lembrar. E agora, com freqüência, a lembrança o assaltava e insistia em moldar aquele rosto desconhecido ao meu. Na época, não devo ter dado muita atenção, mas hoje, diante das circunstâncias, penso nisso com freqüência. Muito me intriga.

Assaltam-me imagens de Renato Sereno, com seus óculos e sua agenda, o jornal debaixo do braço, no silêncio do ato de pagar a passagem no ônibus, entre os rangidos dos automóveis, na sua chegada silenciosa no café, no seu escritório silencioso, sua presença que não demovia a solidão, mas a exponenciava, sua presença fugidia, seu andar descompromissado, seu silêncio confortável, jamais ameaçador, que não constringia, que não limitava, sua ausência de discurso. E penso em quando pronunciava os restos de palavras que na verdade fugiam de sua boca. Era como um relógio quebrado, um ponteiro numa hora indecifrável entre 1 e 12 que não fosse nenhum dos números do relógio, que não era nenhuma hora, mas o instante eterno. Renato Sereno aceitou viver como se aceita uma dessas canetinhas que oferecem os ambulantes nos ônibus, “sem compromisso”, a indiferença no ato de pagar.

Em suas últimas aparições em público – viam-no entre as ruas tumultuadas do centro da cidade –, era visto com sacolas nas mãos, caminhando no mesmo compasso de sempre, olhos devaneados, perdidos, cabelo desgrenhado, andar desengonçado, e muitos partilham o mesmo depoimento: parecia desvanecer, não tinha aparência frágil, sua palidez era incomum, a pele quase translúcida, fantasmal, muitos tiveram a impressão de enxergar o trajeto da luz através de seu corpo. Sua presença sempre se fez nula, sempre negou qualquer protagonismo, nunca se importou em ganhar o jogo, nunca se importou ao menos em tentar jogá-lo. Contei uma história impossível às palavras, irredutível a elas.

Renato Sereno. Irredutível à palavra. Poderia descrevê-lo, descrever suas ações, adivinhar-lhe pensamentos, ou acrescentar, inventar. O infinito, a aterradora ideia do infinito. Mas o infinito se reduz à palavra e muitas vezes parece inofensivo. Da minha parte, sempre senti um vago incômodo na impossibilidade de apreendê-lo, de imaginá-lo. A cabeça se confunde. Mas Renato Sereno é essa vaga ideia, esse vago momento que expande os espaços e todas as coisas. Esse relógio quebrado. Aqui está escrita e ainda se escreve e muitas vezes voltará a se escrever a história de Renato Sereno, que precisou se inventar, se escrever por si só, como uma mão que se desenha a si própria. Aqui jaz. Não há quem me desminta minha própria história.

Renato Sereno,
outubro 2011.

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