Parte 1: O cristão decente
Pernas cruzadas, silêncio respeitoso, gestos curtos e prudentes. Algumas palavras trocadas, discretamente, despretensiosas. Pergunta, resposta, silêncio. Pergunta, resposta, silêncio. A TV sintonizada detém a atenção. Faustão tenta ser engraçado e faz comentários estúpidos. O programa decorre aos trôpegos indiscretos e constrangedores da arrogância discreta de Faustão, e se arrasta, então, tentando se apoiar nos truques midiáticos e nos comerciais do plin-plin. A telinha absorve a mente. Alguém reclama do calor – realmente, a sala está abafada. Alguém abre a janela e uma brisa suave penetra desesperada e faz redemoinhos por entre os cabelos, e um alívio percorre o corpo de todos. A noite está resplandecente, e uma lua pálida projeta-se pela janela. “Nossa, estava muito abafado”, comentam. “São dias quentes”, outro comenta e todos concordam. “É o aquecimento global”, arriscam. E de novo o silêncio paira sobre a sala, embora haja alguma tentativa de confabulação. Alguém pergunta se querem um copo com água. Alguns aceitam, outros simplesmente agradecem. Há uma tensão coerciva no ar – todos têm medo de cometer qualquer imprudência.
“Hoje em dia, tudo está muito mudado. Não há mais respeito – você, que é do interior, você percebe?”
“É. É mesmo. Você veja, quando você era criança, você não pedia benção a seus pais? Chegava de um lugar e: ‘benção, meu pai ou minha mãe’ – não era assim? Hoje em dia não tem mais respeito. Tratam como se a gente fosse qualquer um, ‘e aí, bicho’, é assim; cheio de gírias”.
“Concordo. Eu lembro que meus pais exigiam que pedisse a benção. E, na frente das visitas, não se podia falar! Como havia mais respeito naquela época, mais disciplina. Você vê, é por isso que hoje há tanta desgraça no mundo, filho matando pai etc etc. Se ninguém respeita os pais, o que dizer da palavra de Deus, que está acima de tudo? As coisas mudaram bastante”.
Sim, mudaram na sua época, na sua geração, e mudarão na minha; nessas horas, ninguém critica a própria geração, sua própria conduta. É assim, uma se sobrepondo a outra, e todas querendo para si o título de melhor conduta cristã para, posteriormente, julgar como bem entendem a próxima geração e tentar conduzi-la a seus moldes. Todo sábio reclama para si seus discípulos. Todo discípulo quer, um dia, ser sábio para reclamar os seus. A palavra na boca de um ancião decrépito é revestida de ouro e possui a força de uma verdade. Escutemo-na.
“Você, que morou no interior, sabe como é a disciplina. Eu fico maravilhada com o povo do interior, como são educados, disciplinados! E como respeitam a religião! Você vê, bate as 6 horas da noite, todo mundo tira o chapéu pra rezar! E o que quer que façam, pedem bênção ao pai, a mãe.”
As coisas mudaram. É, as coisas mudam. Que tapa na cara dos conservadores, que iluminação! Que descoberta! Não me interesso por esse velho discurso manjado sobre como as coisas estão diferentes e piores, de como a juventude se perdeu, de como o país caiu na miséria e todo esse blá blá blá cheio de empáfia e falso moralismo sobre tudo e todos. De alguma forma, estamos todos em contradição. E eu não me importo. Não me importo se eu concordo ou discordo deles, mas não quero ouvi-los, não gosto de quem toma partidos extremos. Sou da incerteza, do imponderável. E não me mato em dúvidas. De fato, é um ciclo vicioso, e todos querem desatar a malha que teceram. Provavelmente não se lembram de como lutaram contra a repressão do seu tradicionalismo cultural, de como ao menos puderam respirar melhor depois que as correntes conservadoras começaram a ceder e afrouxar. É a memória curta e a falta de reflexão crítica. Absorvem informações demais que tomam todo o lugar na mente e a deixam mais decrépita e miasmática do que o tempo consegue fazê-lo. Mas eu não quero criticá-los. Arrisco:
“Só que a promiscuidade é bem frequente, né?”.
Com certeza a promiscuidade no interior é grande, mas isso todo mundo abstrai, nessas horas. É papo de cabra macho que abusa das investidas e dos sucessos para contar vantagem sobre os amigos. Mas isso é entre amigo homem. Isso não é conversa que se tenha com uma dama, numa reunião de família.
Todos concordam e se calam; esqueçamos o assunto. Não é coisa que cristão decente discuta. Voltemos a Faustão. É reprise. Porra.
Parte 2: Retorno à infância da Cognição
Uma garotinha corre pela rua, entre as poças de lama das chuvas torrenciais da tarde, seu vestido drapeja esvoaçante; outros dois menininhos correm também e sorriem estridentes. A garotinha pisa, subitamente, numa das poças de lama que respinga por tudo quanto é lugar e também pelo seu vestido. Ela não se importa, apenas ri, em toda sua inocência, despretensiosa, é como se satirizasse toda essa vida coerciva, rude e exigente. Ela apenas não sabe o que virá. A vida não existe para ela; apenas o momento, as calçadas resfriadas, úmidas, que resistiram durante o dia todo à descarga torrencial de gotas pontiagudas em sua carapaça desgastada e esburacada; e a noite resplandecente, que chegou como uma notícia alegre depois do temporal monótono da tarde, e a lua gélida e protuberante na imensidão escura do céu, as estrelas silenciosas que se escondem nas nuvens para depois reaparecerem com brilho mais intenso e mais evidente; e as nuvens roseaplúmbeas que escorrem lenientes pelo céu e se fundem, e se transformam e se reformam e finalmente se redefinem, mutáveis e incertas. E as luzes lacrimais dos postes, difusas como lágrimas nos olhos. Apenas o momento e o espaço, em sua coexistência limítrofe, em seus conceitos abstratos, é tudo o que existe para a menina. Enquanto ela tiver espaço para correr e seu momento de diversão, enquanto seus pais permitirem que brinque com seus amiguinhos, ela será feliz – numa eternidade que durará por alguns minutos.
A infância, apesar de ingênua, não é facilmente modelável, é teimosa e resistente; é quando as leis sociais e os regramentos convencionais podem ser transgredidos sem maiores punições. É como Adão e Eva no Éden antes de experimentarem o fruto do conhecimento. Na verdade, o mito de Adão e Eva é uma metáfora perfeita para explicar a ingenuidade e inocência da criança.
Sigo meu caminho, mas me aproximo delas. A menina, mais próxima, me olha e mantém seu olhar, porque eu olho nos olhos dela. Eu sou mais fraco, desvio os meus primeiro. Ela continua sua brincadeira. Eu paro e observo. A menina percebe que eu ainda estou ali. Ela se vira e se aproxima. Eu não me sinto altivo, observando-a se aproximar, pelo contrário, é como se a menina fosse uma espécie de sábio que dominasse todo tipo de conhecimento, e eu, apenas um discípulo atormentado pelas dúvidas e questões humanas. Sinto-me acuado. Olhamo-nos.
“Você é um estranho. Vai me seqüestrar?”, ela diz.
“Não, não vou te seqüestrar”, respondo, não menos aliviado da fraqueza que me acometeu. “Você deveria ter cuidado, a rua está esquisita”, digo.
“Não quer brincar?”
“Não, obrigado. Por que não volta pra casa?”
“Estou brincando, não ta vendo?”
Não sei o que dizer.
“Mamãe diz que todo mundo que é mais velho sabe de muita coisa e pode me ensinar muita coisa”, ela diz.
“Eu não tenho nada pra te ensinar. Você é que me diz muita coisa.”
“Eu?”
Os meninos agora se aproximam, desconfiados. Acho que pensam que sou um seqüestrador e em suas mentes infantis e fantasiosas, pensam em me fazer em pedacinhos, como seus super-heróis fazem com os vilões. Mas eu apenas os observo se aproximar.
“Por que não volta a brincar com eles?”, pergunto a menina, mas os garotos já chegaram.
Eles se olham e os meninos não têm mais a expressão receosa no rosto. Eles me olham curiosos agora.
“Quem é você?”, um deles pergunta.
“É meu novo amigo”, a menina se precipita em responder.
“Não, não sou seu amigo. Sou um estranho, você não pode fazer amizade com um estranho, assim, de uma hora pra outra”, eu digo em tom paternal.
“Por que não vem brincar com a gente?”, pergunta o outro menino.
“Não posso, tenho que ir”.
Não sabemos o que dizer agora, mas não é nada constrangedor estar com eles. Sinto-me um pouco mais livre, e uma sensação de que sou mais velho do que eles me acomete. Estou de volta à realidade, nada de dimensão filosófica. Por um momento, penso em como cheguei até onde estou, em como me transformei no que sou hoje. Penso por qual caminho segui e quais os acasos me guiaram por aqui e me desviaram do caminho convencional que meus pais desejaram para mim. Tiro um cigarro da carteira no meu bolso e, com o isqueiro, acendo. Os meninos, de olhos arregalados, surpresos, exclamam, como se eu tivesse cometido o maior crime do mundo:
“Você fuma!”
Perdi meus créditos com os pirralhos, eu penso. Agora me rebaixaram a um nível quase ignominioso, desprezível. Eu os entendo, eu mesmo me reprimo por isso. Mas eles ainda não entendem. Talvez nunca entendam, e, com suas mentes obtusas, abominarão todos que praticam esse ato execrável para a sociedade convencional.
Por um momento, achei que tinha sido iluminado com todo o conhecimento lúdico e transcendental que só as crianças propiciam, achei que tinha alcançado uma espécie de satori, e quase cai na ingenuidade tão aclamada e exaltada por Kerouac. Impressões impressionistas, apenas. Eu era eu e sustentava nas costas o baque da realidade em peso. E as crianças correram desengonçadas, foram continuar suas brincadeiras em outro lugar. Logo estariam transando uma com as outras, elas mesmas praticariam ménage à trois, e os conceitos de amizade e amor se confundiriam e, finalmente, elas alcançariam o conhecimento absoluto, a verdade que move o mundo, e toda essa abstração e esse transcendentalismo de que falam os discursos metafísicos das religiões e seitas e filosofias sobre existência humana.
Ou simplesmente nossa sociedade convencional e situacionista consiga moldá-los de acordo com seus contornos e suas subjeções impositivas, com seus regramentos e seu tradicionalismo miasmático e estático no qual ela mesma definha e se putrefaz. Mas a carne é fraca, o pecado é tentador. Segui meu caminho enquanto os pirralhos me abominavam por tudo o que eu sou e por tudo o que elas pensam que sou. Fui embora, sob essa noite quase límpida e impoluta, sob a imensidão escura do céu, sem rumos e sem profecias. Sem verdades. Só o pensamento e as vontades. E os desejos sexuais.
Pernas cruzadas, silêncio respeitoso, gestos curtos e prudentes. Algumas palavras trocadas, discretamente, despretensiosas. Pergunta, resposta, silêncio. Pergunta, resposta, silêncio. A TV sintonizada detém a atenção. Faustão tenta ser engraçado e faz comentários estúpidos. O programa decorre aos trôpegos indiscretos e constrangedores da arrogância discreta de Faustão, e se arrasta, então, tentando se apoiar nos truques midiáticos e nos comerciais do plin-plin. A telinha absorve a mente. Alguém reclama do calor – realmente, a sala está abafada. Alguém abre a janela e uma brisa suave penetra desesperada e faz redemoinhos por entre os cabelos, e um alívio percorre o corpo de todos. A noite está resplandecente, e uma lua pálida projeta-se pela janela. “Nossa, estava muito abafado”, comentam. “São dias quentes”, outro comenta e todos concordam. “É o aquecimento global”, arriscam. E de novo o silêncio paira sobre a sala, embora haja alguma tentativa de confabulação. Alguém pergunta se querem um copo com água. Alguns aceitam, outros simplesmente agradecem. Há uma tensão coerciva no ar – todos têm medo de cometer qualquer imprudência.
“Hoje em dia, tudo está muito mudado. Não há mais respeito – você, que é do interior, você percebe?”
“É. É mesmo. Você veja, quando você era criança, você não pedia benção a seus pais? Chegava de um lugar e: ‘benção, meu pai ou minha mãe’ – não era assim? Hoje em dia não tem mais respeito. Tratam como se a gente fosse qualquer um, ‘e aí, bicho’, é assim; cheio de gírias”.
“Concordo. Eu lembro que meus pais exigiam que pedisse a benção. E, na frente das visitas, não se podia falar! Como havia mais respeito naquela época, mais disciplina. Você vê, é por isso que hoje há tanta desgraça no mundo, filho matando pai etc etc. Se ninguém respeita os pais, o que dizer da palavra de Deus, que está acima de tudo? As coisas mudaram bastante”.
Sim, mudaram na sua época, na sua geração, e mudarão na minha; nessas horas, ninguém critica a própria geração, sua própria conduta. É assim, uma se sobrepondo a outra, e todas querendo para si o título de melhor conduta cristã para, posteriormente, julgar como bem entendem a próxima geração e tentar conduzi-la a seus moldes. Todo sábio reclama para si seus discípulos. Todo discípulo quer, um dia, ser sábio para reclamar os seus. A palavra na boca de um ancião decrépito é revestida de ouro e possui a força de uma verdade. Escutemo-na.
“Você, que morou no interior, sabe como é a disciplina. Eu fico maravilhada com o povo do interior, como são educados, disciplinados! E como respeitam a religião! Você vê, bate as 6 horas da noite, todo mundo tira o chapéu pra rezar! E o que quer que façam, pedem bênção ao pai, a mãe.”
As coisas mudaram. É, as coisas mudam. Que tapa na cara dos conservadores, que iluminação! Que descoberta! Não me interesso por esse velho discurso manjado sobre como as coisas estão diferentes e piores, de como a juventude se perdeu, de como o país caiu na miséria e todo esse blá blá blá cheio de empáfia e falso moralismo sobre tudo e todos. De alguma forma, estamos todos em contradição. E eu não me importo. Não me importo se eu concordo ou discordo deles, mas não quero ouvi-los, não gosto de quem toma partidos extremos. Sou da incerteza, do imponderável. E não me mato em dúvidas. De fato, é um ciclo vicioso, e todos querem desatar a malha que teceram. Provavelmente não se lembram de como lutaram contra a repressão do seu tradicionalismo cultural, de como ao menos puderam respirar melhor depois que as correntes conservadoras começaram a ceder e afrouxar. É a memória curta e a falta de reflexão crítica. Absorvem informações demais que tomam todo o lugar na mente e a deixam mais decrépita e miasmática do que o tempo consegue fazê-lo. Mas eu não quero criticá-los. Arrisco:
“Só que a promiscuidade é bem frequente, né?”.
Com certeza a promiscuidade no interior é grande, mas isso todo mundo abstrai, nessas horas. É papo de cabra macho que abusa das investidas e dos sucessos para contar vantagem sobre os amigos. Mas isso é entre amigo homem. Isso não é conversa que se tenha com uma dama, numa reunião de família.
Todos concordam e se calam; esqueçamos o assunto. Não é coisa que cristão decente discuta. Voltemos a Faustão. É reprise. Porra.
Parte 2: Retorno à infância da Cognição
Uma garotinha corre pela rua, entre as poças de lama das chuvas torrenciais da tarde, seu vestido drapeja esvoaçante; outros dois menininhos correm também e sorriem estridentes. A garotinha pisa, subitamente, numa das poças de lama que respinga por tudo quanto é lugar e também pelo seu vestido. Ela não se importa, apenas ri, em toda sua inocência, despretensiosa, é como se satirizasse toda essa vida coerciva, rude e exigente. Ela apenas não sabe o que virá. A vida não existe para ela; apenas o momento, as calçadas resfriadas, úmidas, que resistiram durante o dia todo à descarga torrencial de gotas pontiagudas em sua carapaça desgastada e esburacada; e a noite resplandecente, que chegou como uma notícia alegre depois do temporal monótono da tarde, e a lua gélida e protuberante na imensidão escura do céu, as estrelas silenciosas que se escondem nas nuvens para depois reaparecerem com brilho mais intenso e mais evidente; e as nuvens roseaplúmbeas que escorrem lenientes pelo céu e se fundem, e se transformam e se reformam e finalmente se redefinem, mutáveis e incertas. E as luzes lacrimais dos postes, difusas como lágrimas nos olhos. Apenas o momento e o espaço, em sua coexistência limítrofe, em seus conceitos abstratos, é tudo o que existe para a menina. Enquanto ela tiver espaço para correr e seu momento de diversão, enquanto seus pais permitirem que brinque com seus amiguinhos, ela será feliz – numa eternidade que durará por alguns minutos.
A infância, apesar de ingênua, não é facilmente modelável, é teimosa e resistente; é quando as leis sociais e os regramentos convencionais podem ser transgredidos sem maiores punições. É como Adão e Eva no Éden antes de experimentarem o fruto do conhecimento. Na verdade, o mito de Adão e Eva é uma metáfora perfeita para explicar a ingenuidade e inocência da criança.
Sigo meu caminho, mas me aproximo delas. A menina, mais próxima, me olha e mantém seu olhar, porque eu olho nos olhos dela. Eu sou mais fraco, desvio os meus primeiro. Ela continua sua brincadeira. Eu paro e observo. A menina percebe que eu ainda estou ali. Ela se vira e se aproxima. Eu não me sinto altivo, observando-a se aproximar, pelo contrário, é como se a menina fosse uma espécie de sábio que dominasse todo tipo de conhecimento, e eu, apenas um discípulo atormentado pelas dúvidas e questões humanas. Sinto-me acuado. Olhamo-nos.
“Você é um estranho. Vai me seqüestrar?”, ela diz.
“Não, não vou te seqüestrar”, respondo, não menos aliviado da fraqueza que me acometeu. “Você deveria ter cuidado, a rua está esquisita”, digo.
“Não quer brincar?”
“Não, obrigado. Por que não volta pra casa?”
“Estou brincando, não ta vendo?”
Não sei o que dizer.
“Mamãe diz que todo mundo que é mais velho sabe de muita coisa e pode me ensinar muita coisa”, ela diz.
“Eu não tenho nada pra te ensinar. Você é que me diz muita coisa.”
“Eu?”
Os meninos agora se aproximam, desconfiados. Acho que pensam que sou um seqüestrador e em suas mentes infantis e fantasiosas, pensam em me fazer em pedacinhos, como seus super-heróis fazem com os vilões. Mas eu apenas os observo se aproximar.
“Por que não volta a brincar com eles?”, pergunto a menina, mas os garotos já chegaram.
Eles se olham e os meninos não têm mais a expressão receosa no rosto. Eles me olham curiosos agora.
“Quem é você?”, um deles pergunta.
“É meu novo amigo”, a menina se precipita em responder.
“Não, não sou seu amigo. Sou um estranho, você não pode fazer amizade com um estranho, assim, de uma hora pra outra”, eu digo em tom paternal.
“Por que não vem brincar com a gente?”, pergunta o outro menino.
“Não posso, tenho que ir”.
Não sabemos o que dizer agora, mas não é nada constrangedor estar com eles. Sinto-me um pouco mais livre, e uma sensação de que sou mais velho do que eles me acomete. Estou de volta à realidade, nada de dimensão filosófica. Por um momento, penso em como cheguei até onde estou, em como me transformei no que sou hoje. Penso por qual caminho segui e quais os acasos me guiaram por aqui e me desviaram do caminho convencional que meus pais desejaram para mim. Tiro um cigarro da carteira no meu bolso e, com o isqueiro, acendo. Os meninos, de olhos arregalados, surpresos, exclamam, como se eu tivesse cometido o maior crime do mundo:
“Você fuma!”
Perdi meus créditos com os pirralhos, eu penso. Agora me rebaixaram a um nível quase ignominioso, desprezível. Eu os entendo, eu mesmo me reprimo por isso. Mas eles ainda não entendem. Talvez nunca entendam, e, com suas mentes obtusas, abominarão todos que praticam esse ato execrável para a sociedade convencional.
Por um momento, achei que tinha sido iluminado com todo o conhecimento lúdico e transcendental que só as crianças propiciam, achei que tinha alcançado uma espécie de satori, e quase cai na ingenuidade tão aclamada e exaltada por Kerouac. Impressões impressionistas, apenas. Eu era eu e sustentava nas costas o baque da realidade em peso. E as crianças correram desengonçadas, foram continuar suas brincadeiras em outro lugar. Logo estariam transando uma com as outras, elas mesmas praticariam ménage à trois, e os conceitos de amizade e amor se confundiriam e, finalmente, elas alcançariam o conhecimento absoluto, a verdade que move o mundo, e toda essa abstração e esse transcendentalismo de que falam os discursos metafísicos das religiões e seitas e filosofias sobre existência humana.
Ou simplesmente nossa sociedade convencional e situacionista consiga moldá-los de acordo com seus contornos e suas subjeções impositivas, com seus regramentos e seu tradicionalismo miasmático e estático no qual ela mesma definha e se putrefaz. Mas a carne é fraca, o pecado é tentador. Segui meu caminho enquanto os pirralhos me abominavam por tudo o que eu sou e por tudo o que elas pensam que sou. Fui embora, sob essa noite quase límpida e impoluta, sob a imensidão escura do céu, sem rumos e sem profecias. Sem verdades. Só o pensamento e as vontades. E os desejos sexuais.
2 comentários:
Parte 2: Retorno à infância da Cognição:
gostei bastante da ideia desse texto, do outro também, mas esse ficou mais gostosinho.
bjs
curti muito, os dois.
o primeiro pela situação que é tão caoticamente familiar a mim. Promiscuidade não é assunto que cristão decente discute, huahuhauhaua -dedo na ferida!! família e cristianismo são dois termos muito encrenqueiros pra mim =D
a segundo é muito fofo-poético, me põe em contato com uma realidade que a gente esquece (porque deixa de ser eterna e fascinante), e é um bom discurso anti-hipócrita.
o sr escreve bem.
abraços!!
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