sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Amor, Sexo & Stravinsky.

Não vou resistir, pensou. É mesmo um redemoinho, estamos no mesmo barco. Não resistiu. A última palavra de adeus fora dada, cumpriram com a transação de suas vidas, na qual um pagava com o corpo e com as carícias apaixonadas. Comunhão espiritual, carnal, compactuavam-se. Agora seus espíritos imiscuídos irrompiam-se, rescindiam-se no último golpe dilacerante: a negação do marasmo idílico – deram o que tinham para dar. Ela quis assim, ele entendia, mas não aceitava. Necessidade de novas faces, de novos momentos – não que não tivesse achado o amor, não que não o tivesse amado. Era uma Don Juan desejosa, que compreendia o amor e queria compartilhá-lo, não atestar sua intensidade, não para qualificá-lo, mas para disseminá-lo. Multiplicá-lo. Saciedade? Se o abandonou, não foi por o não desejar, ou por o não amar, mas por desejar outros, desejar amar outros. Talvez fosse adepta e sustentasse o discurso do hedonismo. A verdade é que se sentia livre para amar – e amar em si era um ato de liberdade, num mundo coercivo, impregnado da sujeira dos entulhos caóticos dos mecanismos sociais, disputado pelo predatismo sistemático do capitalismo por excelência – e não fazia do amor algo a se expropriar: a reciprocidade, pois, não cria exigências.

Mudava de ares menos para renovar as energias do que para conhecer o novo; não procurava, porque não tinha esperança de achar, mas tinha necessidade de mostrar (ao mesmo tempo que se satisfazia) todo seu desejo, toda sua ternura, tudo o que sabia sobre amar. Pois, qualquer que seja o significado que o conceitue, o amor não é muito mais do que desejo e ternura. E essa experiência ela teve aos montes, todos ou a maioria muito distintas uma das outras, pois não era ela que fazia do ser amado um ser especial, um ser único, mas ele próprio. Ela saboreava o que ele tinha para oferecer, deixava-se conduzir contanto que as mãos do outro delineassem sabiamente os contornos do relacionamento. Ela tinha suas manhas, assim como tinha seus melindres. Peculiaridades.

Ela fechou a porta assim que ele entrou no elevador. Trancou. Nenhuma lágrima? Uma talvez. Sua excitação havia esmorecido depois da discussão que tivera. Mas tudo o que ela precisava era de Stravinsky, de sua agitação, de sua veemência, para revolver os sentimentos condensados na alma, para dissipá-los, fazê-los em pedaços com os movimentos dilacerantes, discordantes e irruptivos dos seus instrumentos. Pôs a Consagração da Primavera. Estendeu-se na cama e tentou relaxar. Gostava de Stravinsky porque sua música era inconciliável, discordante, dissonante, como sua vida; Stravinsky oscilava.

A música, tudo ainda era inspiração, aspiração. As notas se compactuavam, lenientes, e cessavam, como quem procura palavras para expressar alguma coisa e hesita em quais escolher. O tom parecia se preciptar, a melodia era derrisória, mas já começava a tender para um suspense grave. Ah, Stravinsky, você era esperto. Finalmente as palavras, as notas, pareciam se articular, pareciam se conciliar, consignadas – pareciam concordar em alguma coisa e queriam dizê-la. Mas, na voz de Stravinsky, qualquer acordo é quase intratável, porque sabem que Stravinsky é imprevisível, e por isso o acordo, qualquer que fosse, seria escorregadio, instável e a harmonia poderia se desfazer tão prontamente ao desejo de Stravinsky.

Ela se compactuava à música, fundia-se à música; com a voz dos instrumentos, dava vazão aos seus sentimentos desconcertantes, como se cada movimento interpretasse ou descrevesse uma parte da sua vida, ou melhor, do seu relacionamento amoroso, de como começou, de como se estruturou num equilíbrio terno e espontâneo e de como tudo se desfez, se desmoronou ao sopro avassalador das vontades, dos desejos que a instablizavam. Não os desejos que a fazia entregar-se a ele, mas os desejos de se entregar ao mundo; não fisicamente, apenas, não sexualmente, apenas.

A música fluía, paralela às idéias e aos pensamentos. Confluíam-se. Era sua história que era interpretada por uma peça musical. No entanto, o enredo não era nenhuma surpresa – era sua própria história contada. E esperava o momento em que tudo irromperia, o momento dilacerante em que as notas não mais se compactuariam, mas se disseminariam como balas metralhadas a esmo, que rasgariam sua alma; esperava o soco de Stravinsky, as mãos pesadas que revolveriam sua alma condensada. Tinha de esquecer tudo. Amanhã, acordaria e teria sua pele trocada. Sua alma estaria límpida, novamente. Stravinsky seria então trilha sonora para sua nova aventura amorosa. Ou para exaltar a monotonia de um dia rotineiro.

A peça havia-se enviesado pelos movimentos instáveis – ela pôde finalmente identificar os últimos momentos que vivenciara. As notas oscilavam, agora, entre as intrigas do dia-a-dia e a concupiscência apaixonada da noite. Tudo convergia. O fim estava próximo. Ela não se surpreenderia com o final – vivenciara isso já muitas mil vezes. Stravinsky era mesmo inconciliável. Na obra de Stravinsky, não havia harmonia para trilhar uma vida – exceto uma vida desconcertada como a dela.

De repente, a campainha soou. Ela sabia quem era. Hesitou em se levantar, mas resolveu-se ir. Era ele. Stravinsky explodia como bomba atômica no quarto dela. E ele esperava em frente à porta – sabia que ela abriria. Não vou resistir, pensou. É mesmo um redemoinho irreversível, mas se pode permanecer nele tempo bastante. Ela abriu. Olharam-se, seus olhos se corresponderam, consignaram-se. Foram para cama, ao som dilacerante de Stravinsky. Transaram pela última vez. Sem palavras, despediram-se como se cumprimentaram – com os olhos. Stravinsky já pretendia descansar.

Silêncio. Agora tinha a promessa do amor entranhada na carne. Sentia-se revigorada, mas com a mesma pele que recendia o cheiro dele. Amanhã esse cheiro seria transferido para a cama, que o absorveria e o diluiria. Ele nunca mais voltaria – seria melhor assim.

Um comentário:

neTrop!k@lista disse...

Excelente!! Como você disse alguma vez em relação a um texto meu, este texto teu talvez seja daquele tipo em que nada acontece e diz exatamente tudo. A Sagração da Primavera do Stravinsky (um dos meus prediletos, diga-se de passagem) é realmente uma viagem, e foi uma viagem maior a sua (ponto positivo) relacioná-la a relacionamentos, frágeis, irreversíveis e imprevisíveis, como a própria obra de Stravinsky. O final é fantástico, seria um barato se essa mina existisse ;D
abraços