Nem sempre. Na verdade, a noite transluzia e fluía leniente ao sopro de brisas gélidas que perfuram a alma e o corpo como agulhas. A atmosfera liquefazia-se nessa transparência lúcida e aparentemente impoluta que carregava o ar. Noite vívida. E o céu rejubilava-se em sua imensidão infinda. Apenas algumas nuvens se condensavam como esperma e se dispersavam, tímidas, despretensiosas. Sem receios. Sem anúncios de futuras tempestades. Mas os ventos dançavam em redemoinhos inofensivos e invisíveis, invadiam as janelas e varandas por entre os dédalos de concreto armado, e iam incomodar seus moradores sonolentos e os insones e zumbis de madrugadas como esta. Madrugadas como esta coincidem com uma boa programação na TV, para estimular a concorrência. Deixo de observar o céu reluzente sem estrelas e volto à TV. Mas Jô não me estimula, seu humor sem exageros e sua postura galante me agradam, mas não estou a fim. Repasso os canais pela terceira vez, os mesmos canais, os pastores pregam a palavra divina com todo fervor e ascetismo, jovens rapazes caçam vampiros noite adentro, entrevistador e entrevistado se olham sem saber o que falar, enchendo lingüiça com as mesmas perguntas e com as mesmas respostas, e a indecisa MTV, entre vinhetas críticas e propagandas de celular, exibe clipes de bandas clássicas – ABBA, Blondie, Clash. Não há putaria, e eu chego à conclusão frustrante do quanto a TV aberta é obtusa e pouco diversificada. É como se minha mente se estruturasse a partir dos programas: se eu não tenho muito o que falar, se tenho pouco assunto, não existe grandes possibilidades de sociabilização. E o pensamento é monolítico, além de escasso.
No céu, as nuvens roseaplúmbeas escorrem monótonas na imensidão, transfiguram-se em imagens pareidólicas, incertas. Sinto-me transfundir na paisagem; não tenho alucinações e o céu e as nuvens não são reflexos absolutos do meu estado de espírito, mas ambos se compactuam numa acintuosa ficção de palavras e sensações. Começo a me excitar. A noite exalta os espíritos libertinos.
Nas ruas venais lá embaixo, o silêncio e a escuridão engolem tudo. Um único murmúrio reminiscente – não sei se produzido na mente ou se são ecos reais – do que foi o tumulto tonitruante, o rosnar dos automóveis, o tilintar de pratos e talheres, e garrafas ou as últimas conversas e gargalhadas dos bêbados. O silêncio ressalta os ruídos anônimos e ignorados, dos insetos, dos postes de iluminação (a luz faz barulho), dos ventos em redemoinhos. Ruídos constantes, mas imperceptíveis para os transeuntes apreensivos e atarefados do cotidiano convencional. Não surgem apenas em madrugadas silentes e ociosas como esta; estão aí, sempre, do lado de fora, emitindo suas ondas sonoras que se distinguem quando recebida a devida atenção. Alguns zumbidos de carros fazem-se soar, esparsamente, lá embaixo. Os últimos carros? Para onde vão, de onde vêm – não sei. Não importa. São apenas detalhes que percebemos quando há silêncio e escuridão por toda parte, quando não há nada e a certeza imponderável, mas insistente de que não há nada. O silêncio ressalta a respiração. E os pensamentos parecem falar mais alto. Quando não há nada do lado de fora para se perceber, percebemos nosso íntimo; nossas entranhas clareiam-se, se mostram em muitos de seus segredos; e todos os nossos sentidos aguçam-se inutilmente para sentir o nada, como se procurassem algum pragmatismo no vazio (pré)conceitual das coisas. Isso pode ser frustrante quando descobrimos que não há proveito nenhum para se tirar. É quando o ócio se manifesta sem o típico prazer de se omitir das responsabilidades (e aí, sentimos que precisamos delas); ou quando não há muito que fazer, e a cama ainda é a última opção. Procuramos um passatempo, nessas horas. Qualquer que seja. Talvez, por isso, os pensamentos sejam revelados e relevados e pareçam mais gritantes, mais intensos, mais claros. Mas eu não estou a fim.
Primeiro, parecem surgir inevitavelmente e, normalmente, vão tomando conta do corpo e da mente. Substituem qualquer outro pensamento e vão se alastrando. O espírito libertino acorda, numa volúpia que se intensifica cada vez mais; excito-me, tenho vontades e desejos. Mas nem sempre. Estou cansado, talvez. Os pensamentos, no entanto, batucam, insistem, as imagens surgem, sem espalhafatos, mas sem promessas de se irem embora. É o tédio. E tudo quanto ele representa e o que me faz lembrar. Preocupações, responsabilidades, tudo que me apreende no dia-a-dia dos dias. Mas não é isso ainda. Nem sempre. Não estou a fim. Desabotoou a bermuda, afasto a cueca e deixo meu pênis respirar livre o ar em abundância da nossa atmosfera. Observo-o, está flácido como um molusco, sem sinais de vida, sem pulsação. Respiro e vejo que se mexe, indolentemente. Nem sempre. Mas não estou a fim. A volúpia parece obstruída em alguma parte da alma, não consegue atingir o corpo para fazê-lo estremecer e inflamá-lo em excitação. Não há vontade. Não há tesão. Só os corpos que minha mente incontrolável vislumbra diante de mim, numa profusão surreal de imagens eróticas, pornográficas, de garotas em posições obscenas, fazendo gestos obscenos. Quanto mais reluto em pensar alguma coisa, mais penso nela e não consigo parar. Não me importo, mas. Nem Sempre. Não estou a fim. Obscenidades. Elas não têm nomes, não têm identidades, não importa quem são, são como putas. Mas são irreais. Imateriais. Apenas carcaças, bonecas obscenas, brinquedos de sexo, seres-máquinas animados. Essa superficialidade me excita; os corpos despidos, inorgânicos, vazios, incertos, pronunciam-se em minha mente. Massageio-me, como se espalhasse o tesão pelo corpo. Seguro meu pênis e exercito-o; ergue-se, infla-se. Masturbo-o. Ainda uma vaga corrente de volúpia, inconstante e incerta, corre meu organismo. Tenho muitos fetiches, e muitas imagens obscenas implodem, rebentam na mente. No entanto, ainda não sinto a tensão voluptuosa provocada pelo tesão. Masturbo-me, mas num exercício mecânico, com o objetivo de manter o pênis aquecido e ereto. A tensão, agora, parece crescer e eu tenho leves ímpetos de volúpia. Um acesso de libertinagem me acomete.
É quando minhas tensões psicológicas são dissipadas e entro num estado de volúpia; meus valores são desvalorizados, tudo o que minha cultura me condicionou é destituído de seu valor. Cresci sob o moralismo ralo de uma família tradicional de classe média, os valores incutidos em mim, mesmo vagos, corroboram para a formação de alguns medos internos. O prazer de desafiar e superar esses medos são-me excitantes. Sinto o prazer, o prazer de transgredir, de violar os preceitos morais da minha família, da minha própria personalidade condicionada e adaptada ao cotidiano. Nessas horas, me desfaço de mim, da máscara que me imponho e que me amedronta, que me deixa acuado. A obscenidade é um discurso corrosivo que uso para subverter meus próprios valores, minhas próprias idéias. É a minha perversão no sentido doentio da palavra. Mas quando me domina, perco minhas noções de certo e errado, sinto apenas um chamuscar de pecado e sujeira na alma, mas isso é ainda mais excitante. É isso que chamo de libertinagem, o momento em que me excito por me libertar dos valores e me transferir para um mundo depravado e obsceno. Essa libertinagem tem seus níveis, e quanto mais me desfaço das concepções estético-culturais e dos valores morais em mim embutidos, mais excitante tudo fica. No entanto, isso tem um preço que desconheço, mas pago quando menos espero. Há os seus momentos: quando as incertezas são descartadas, não substituídas por verdades cabais, mas escamoteadas, relegadas. Desaproprio-me delas e tudo o que fica é um vazio receptivo a tudo, a novas concepções, ou melhor, às transformações conceptivas. Toda estética estipulada por conveniência pública é, por instantes, abstraída. É isso que acuso de libertinagem. E não o faço por crítica negativa. Mas não consigo me libertar, deliberadamente, de todos os valores. Nem sempre. Não estou a fim.
No entanto, esse acesso de libertinagem é de nível primário, não tendo efeitos impactantes. Ainda procuro na TV algo que me chame atenção, mas Jô continua galante diante dos entrevistados; o pastor ainda discorre fervorosamente sobre os valores cristãos e a participação individual na igreja, assim como a importância de exercer os preceitos de sua religião e de como adaptar suas práticas dogmáticas ao cotidiano; em outro canal, o entrevistador continua a tentar prolongar a conversa na madrugada – maçante. Mas é tudo ainda muito obtuso, estreito, monótono e sem variedades. Meu pensamento continua singular. Mas as imagens obscenas pluralizam-se. É como um vício. Nem sempre. Não estou a fim. Preciso de imagens reais, não mentalizadas. A TV não dispõe disso.
Eu quero, mas não quero? O céu sem estrelas é imperceptível, mesmo em sua imensidão e transparência. Percebo isso. Já o havia percebido. Não há cintilância natural na paisagem; os postes que iluminam as ruas têm suas luzes constantes, mas não brilham, são imóveis, mecânicas, não possuem a inconstância vivente da natureza. E o que isso me importa numa vida de superficialidades como a minha? O que isso importa quando me masturbo pensando em corpos femininos, em genitálias, em obscenidades e não em garotas reais, vivas? Merda, a TV nunca está sintonizada em meus desejos. Não que eu não goste de pensar, de criar situações enquanto me masturbo, mas não é esse o caso agora. Simplesmente não quero isso e preciso ao menos de imagens reais, que não estejam embaçadas pela imprecisão do pensamento. Não acho que quero sexo; masturbar-se não é uma alternativa última que escolhemos para suprir a necessidade do sexo. Aliás, o sexo não suprime a vontade de masturbação. A masturbação não é exatamente uma assimilação do sexo. A verdade é que não sei bem o que quero. Espero da TV qualquer coisa que me agrade, mas tudo quanto poderia fazê-lo não o faz na hora certa – mesmo que o fizesse. Quando estou sóbrio, lúcido, escusado da volúpia sexual que acomete meus sentidos, e quando estou, principalmente, revestido de meus valores cotidianos, posso fazer críticas negativas à TV e tudo o que ela representa e mostra. Percebo que, em horas como esta agora – não sei se pela deturpação causada pelo meu estado mental – que tudo quanto uso como ataque não passa de opinião e argumento manjados de um público unânime. Acho que isso se chama hipocrisia e eu faço parte dela. Quando estou com minha mão no meu pênis, tudo quanto é valor moral é desmistificado – eu aceito isso. Por enquanto, talvez. Nem sempre. Porque ainda me sinto sujo e prostrado. Não estou a fim, talvez. Vício, talvez. A TV não mostra o que eu quero ver, talvez. É uma dúvida constante, talvez. Nem sempre, talvez. Mas a pornografia estimula os sentidos e descartam as incertezas – passo a perceber o mundo a partir dos meus próprios sentidos e de um raciocínio lógico condizente a eles. Todos os valores são desvalorizados e não os transponho; deixo que tudo dependa do tempo conceitual e das imponderações da vida, mesmo que estas sejam descartadas. Não digo como um livro de auto-ajuda diria, nem com os mesmos valores ou o mesmo jargão de uma pseudopsicologia barata – e não deixo que seja algo como: “ah, que tudo aconteça como tem que acontecer, pensamento positivo, bola pra frente”. Porque. Nem sempre. Eu mesmo me confundo quanto a isso, por isso me masturbo. Por isso descentralizo-me, desfiguro-me para me naturalizar a partir do meu instinto sexual. Aliás, Freud explica. E me desfaço de muitas concepções. Penso que a Virgem Maria não era virgem, penso que Cristo fodeu Madalena, penso que Adão e Eva praticavam incesto, já que eram irmãos (ela saiu da sua costela, suponho que tenham o mesmo sangue, ficcionalmente), penso que o mundo rebentou, veio à luz, de um divino ventre fecundo, no qual Deus ejaculou e semeou com seu esperma divino, ou talvez ele o tenha feito em si mesmo por reprodução assexuada – e se Deus fosse uma célula?
O orgasmo se aproxima pulsante, embalando respirações e pensamentos; um delicioso estremecer no corpo o precede. E assim o mundo apaga-se, as luzes da cidade se apagam, a imensidão infinda do céu, as dúvidas e imponderações da vida, a própria vida, a opinião pública, Jô galante, os pastores fervorosos, os entrevistadores e entrevistados, as músicas na MTV indecisa, as questões filosóficas, existenciais, epistemológicas, ontológicas, tudo se dissipa na hora culminante, numa vertigem inexorável. A cabeça, então, gira, a visão escurece, o corpo prostra-se: e eu gozo tudo na minha mão. O esperma viscoso escorre lentamente e se dissipa, entre os dedos, entre as virilhas, assim como o fazem, lá no céu, as nuvens roseapúmbleas dessa madrugada translúcida, fria e silenciosa. Extenuado, fico a cingir o falo, escorregadio, pegajoso, enquanto me recupero. Nem sempre. Não estava a fim.
Um comentário:
Merda, a TV nunca está sintonizada em meus desejos também.
Adorei! O teu texto é uma declaração de amor à vida. De alguma forma acho que também sinto esse vórtice mental, fruto dessas dicotomias e contradições que nós humanos temos que enfrentar.
Abraços!
PS: O último parágrafo é especialmente poético, gostei da estrutura do texto, muito bem escrito, entusiasmante.
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