Faz muito tempo que não escrevo poesia. As razões, suponho, calculo, vasculho, são tantas e nenhuma, tenho apenas uma noção vaga dos motivos específicos, mas a verdade é que as desconheço. Parece que a inspiração, às vezes lampejante em todo seu vigor, não falta, mas as palavras cessam na ponta dos dedos, se escasseiam, e penso envergonhado que não tenho muito a dizer. Quantas palavras, quantos versos desperdiçados em uma poesia que não deu certo, que não soou bem ao se reler? Me pergunto quantas pessoas morreram por não conseguir escrever poesia, por ter perdido subitamente a capacidade de escrever e não ter suportado o resto dos dias numa vida permeada de grandes desejos e grandes sentimentos, de amores e de improváveis acasos, ou de serenidade e paz, e não poder relembrá-los através das palavras. Não descarto a possibilidade de me tornar insensível a tudo isso, uma vida enrijecida pela indisposição das palavras, uma vida cujos principais momentos impressos na memória se desbotam, se apagam, embaçadas por uma névoa branca que invade e cerca os detalhes de cada imagem, a névoa imperdoável do tempo, tudo porque as palavras me faltam, e, aqueles momentos, não posso relembrá-los. Alguns versos surgem por vezes num lampejo, carregando o sentimento intenso do instante pregnante, mas se tornam logo vagos, frágeis, esmorecem por não se completarem em outros versos. E a vida torna-se enrijecida por não poder reviver tais momentos, senti-los novamente através das palavras, aquelas palavras que despertam com toda intensidade a memória distorcida pelo tempo, mas que, essencialmente, recuperam as sensações do instante. Lamento não ter palavras para acioná-la.
Ela me ligou ontem à tarde, na hora crepuscular, a preferida dos poetas, o céu esmaecia entre os prédios, o azul refluía pelo horizonte e o negro da noite se aproximava, eu na varanda desatento aos aviões, livro no colo, palavras em redemoinho, a paisagem, a mesma de sempre, de polígonos, quadrados e retângulos de cores frias e alguns pontos luminosos espalhados pela rua, os postes já se encontravam acesos, e o deslizar das rodas no asfalto, o zumbido que ecoava melancólico nos meus ouvidos seis andares acima do chão. Quando o celular tocou, batia o sono, e as palavras já brincavam afoitas diante dos olhos, embaralhavam-se, confundindo-os, criando novas imagens, situações diversas e arbitrárias, que não correspondiam às linhas escritas no livro. Eu despertei, vi seu nome no visor, atendi, oi tudo bom, tudo bem e você, te atrapalhei, não, ó tô te chamando pra irmos à praia mais tarde pode ser ou vai tá ocupado, pô tudo bem posso ir, massa, só nós dois, não o pessoal do curso tá indo, tudo bem, então tá tchau tchau, tchau, até mais, ela desligou primeiro, o celular na minha mão, encostado no ouvido, calado como se todas as palavras que eu queria ouvir tivessem cessado no último instante, ou se desviado por outra linha e se perdido para sempre no labirinto infinito das linhas telefônicas, no infinito ionosférico. Um vago desejo de não-sei-o-quê, uma vontade de me exaurir – de me descarregar, sim, eu precisava –, se apossou de mim e pensei, por um instante, em jogar pela varanda o celular. Mas tudo isso se passou em um ou dois segundos, e eu poderia jogar tinta no quadro, algumas cores frias, escurecê-las no preto e no azul-escuro e pincelá-las, besuntar a tela e dizer que era a imagem de um garoto com um celular no ouvido, livro no colo, sentado na cadeira da varanda diante do mundo. Diante da noite, que agora engolia tudo, e eu já não podia ler aquelas palavras negras nas páginas friamente azuladas de um livro vermelho.
Risos, piadinhas, boas conversas, risos. Caminhávamos à beira mar, quando, no horizonte distante, onde não se distinguia a linha que dividia o céu do mar, vimos a lua nascer atrasada, ainda que dissesse radiante boa noite, alaranjada como se o sangue fervesse dentro dela. No início, não a reconheci – e ela jamais me perdoou –, chamei a atenção dos meus amigos para aquela bola disforme que crescia lentamente, como uma explosão de filme hollywoodiano, como a explosão de uma bomba atômica que cresce no horizonte diante dos seus olhos e você já não tem tanta esperança, mas nós tínhamos porque era uma noite linda e agradável e nos diluíamos no ar frio que o vento trazia do mar. O que é aquilo, ela atenta à bola por entre nuvens que não se distinguiam como nuvens, apenas umas névoas que borravam todo aquele alaranjado, não sei, nossa que coisa estranha, e nenhum de nós conseguia identificar, e isso me lembrou o dia em que estávamos na casa de um amigo, na piscina que ficava na cobertura do prédio – muito, muito acima do chão – quando no céu, muito além dos prédios da cidade, em qualquer parte arbitrária que não fosse extremidade, surgiu de dentro de uma nuvem um brilho inesperado, como quando riscamos um fósforo, que atingiu seu ponto mais intenso e se reduziu a uma luzinha mínima de avião, e só então pudemos identificar aquela luz misteriosa, quando eu já de boca aberta revisava minha crença em relação a seres alienígenas e discos voadores e milagres cientificamente inexplicáveis e improváveis. Restituídos de nossa surpresa, começamos a palpitar, e mal entramos em consenso, é a lua, ela já se elevava imponente e solene, inalcançável no horizonte, acima do mar, coisa linda, obrigado Deus por uma lua maravilhosa, por uma noite linda como essa, mas você não acredita em Deus, isso não quer dizer que Ele não possa nos presentear com um espetáculo desses, e nós rimos e apreciamos aqueles minutos poéticos que transcorriam estranhamente rápidos demais e só poderíamos restituí-los através da memória. E eu não me afligia por isso, pois sabia que, diante de tamanha beleza, a memória só poderia potencializá-la, e eu guardaria aquela imagem, aquele momento, por muito tempo, até que, esclerosado, só me restasse isso dos tempos lúcidos da minha vida. Por um momento, tive vontade de perscrutar o rosto dela em sua admiração, se seus olhos brilhavam, mas o espetáculo já fechava suas cortinas, e eu só podia vê-la recuperando-se de suas emoções. Talvez estivesse tão surpresa quanto eu, mas aqueles momentos em que nos precipitamos em admirar um mistério que se desvendaria com o tempo, esses momentos são os que permanecem, os que guardamos para contar por aí sobre aquele possível milagre, mas que talvez não soasse tão surpreendente, tão esplêndido quanto nossa impressão inicial. Em mim, aquilo, sempre que me recordasse, causaria uma impressão semelhante à inicial, arrebatadora, ou ao menos a sensação de que presenciei um milagre enquanto fui ignorante, acreditaria nisso porque acredito que a vida é feita de instantes e que esses instantes perduram para sempre em nós, em todos os próximos instantes, e mesmo que se explique o fenômeno, o sentimento daquele instante ficará impresso para sempre.
Andamos até a pracinha e lá nos acomodamos no meio da grama. Sentimos o vento no rosto, o esvoaçar dos cabelos, e toda a poesia de um momento como esses, com suas piadinhas e nossas conversas evasivas. Uma cena me chamou atenção, quando sentamos na arquibancada da pracinha, e me tornei a ela com vaga curiosidade, nenhuma pretensão, e até mesmo com uma vaga consciência da atenção que eu concedia. Era um gatinho, mínimo ser, acuado sob um mínimo pedaço de chão que ocupava no meio da praça, entre pés e pernas que passavam e as chances de ser pisoteado e reagir segundo o instinto em seu estágio mais primitivo. Entretido ou amedrontado, não parava de lamber qualquer coisa no chão, e não olhava para cima, para aqueles gigantes, de jeito nenhum. Seu comportamento o denunciava, sua atitude impensada, inconseqüente, e ninguém o percebia. Quase me detive a acompanhá-lo pelo resto da noite, abstraído, quando fomos embora, para fumar nosso baseado longe de testemunhas.
Nessa madrugada, na outra, hoje, talvez um dia qualquer, ponderei comigo mesmo, em minha cama, antes de dormir, se minha infância não estaria desaparecendo. Talvez sim, talvez aquelas cores e aquelas imagens de outrora desbotassem, ou se perdessem por aí, se escondessem no recôndito da memória até que um dia, quando velho e não vivesse mais a intensidade dos instantes, apenas das recordações, pudesse vasculhar nela os resquícios de uma criança que já fora eu. Mas hoje penso na infância sem aquela nostalgia romântica que permeia os livros de recordações; só acho curioso como algumas coisas perduram. Se há uma cor que definiu a paisagem na minha infância, essa cor é aquela do final da tarde, quando a noite se aproxima, quando o céu desbota e há um silêncio que destoa da música de todas as outras horas, aquelas horas do dia preferidas dos poetas e que correspondem às melhores metáforas. E o ventilador girando na minha cara, enquanto fingia que pensava, mas apenas me deitava e escutava os sons da rua ou a musiquinha do vídeo game que quase nunca jogava. É preciso concordar, há um certo prazer em recordar, faz-me desaparecer, já que, distante do passado, apenas o observo e, no presente, não vivo, inexisto. É como se me destacasse do mundo ainda estando nele, ou melhor, é como se fizesse parte dele, em seu tempo de tempos imemoriais, inconcebíveis para nossa contemporaneidade.
Naqueles tempos, escrevia poesia e nem sabia. Fazia versos sobre coisas específicas e banais, carros a 100km/h, rodas de bicicletas, pássaros e árvores, sobre a rua onde eu morava, a única rua de terra dentre as quatro paralelas, que descia em direção à linha do trem, enquanto a avenida perpendicular a ela passava acima, bem asfaltada, e as casas pareciam prestes a serem tragadas para debaixo da terra, e eu, voltando da escola, caminhava até o meio da rua para descer solenemente como um superherói em slowmotion numa cena caótica onde ao fundo tudo explode e as construções desabam, e contava histórias, também em versos, dos meus personagens favoritos, meus fantasiosos heróis coadjuvantes, nunca centrais, pois minha inocente humildade de criança não se importava em competir pelo mais forte, pelo protagonista. Com meu escasso vocabulário, procurava a rima perfeitinha e quase não importava a concisão; desconstruía toda a oração em busca dela – fazia hipérbatos e nem sabia – e até às preposições era permitido o final do verso. E quantos versos não gastei dedicados às minhas paixões semanais? É engraçado, e parece exagero, sim, não é bem verdade, me apaixonei pouco quando criança – ainda lembro o nome de todas elas – mas tive um amigo que se apaixonava com uma freqüência inacreditável, e tinha uma aptidão para a dor do amor romântico que, com certeza, demandou mais versos que os que escrevi para minhas paixonites. Sempre achei que se tornaria poeta. Quantos amores não desperdicei, quantas hipérboles e clichês não usei, e o tempo que perdi, frustrado, impaciente como um poeta decadente, à procura da rima perfeitinha? Se me encontro diante da mesa, caneta na mão, papel estendido, penso que um dia fui poeta, uma criança poeta, e me surpreendo com aquelas palavras que surgiam da minha inocência e honestidade.
Um dia perdi todas as poesias que escrevi enquanto consciente. Impossível recuperá-las, talvez minha aptidão para a poesia tivesse sumido com aquelas poesias. Perdi a vontade, passei muito tempo escrevendo pornografia nas bancas da sala de aula, em homenagem aos alunos do colégio. Talvez tenha sido minha primeira tentativa de divulgar meus textos; eu não os assumia, escrevia-os no anonimato e eles se tornavam públicos como as frases subversivas nas portas dos banheiros. Eu não me importava, mas me sentia orgulhoso quando ouvia comentários a cerca deles. Além do mais, eu conservava o nome real de todas as pessoas a quem dedicava minhas fantasias sexuais. Ouvi chamarem o autor daqueles textos de pervertido muitas vezes, mas eu nunca quis ser apelativo: todas as minhas palavras eram sinceras em seus desejos.
Por que, se escrevia tanto naquelas bancas, não conseguia escrever poesias? Devo ter feito algumas tentativas, em minhas viagens de ônibus, ir para o colégio, voltar pra casa, comecei a me sentir à deriva daquele cotidiano, ainda que estivesse muito bem inserido nele. Deixava-me levar e talvez isso tivesse me acomodado. Não, chega de tentar investigar a origem do meu bloqueio criativo no âmbito da poesia. Sim, tentei muitas vezes escrever poesia, arrancava páginas do caderno, derramava algumas palavras, conseguia alguns versos, mas talvez não me sentisse satisfeito. Comecei a escrever poesias para depositar em ônibus, amaçava o papel, fazia uma bolinha e jogava por aí, ou simplesmente deixava a folha aberta descansando na poltrona. Um poeta anônimo, frequentador de ônibus, despretensioso, quem seria, quem poderia ser, seria algum movimento, algum manifesto para divulgar novos talentos, ou simplesmente para recuperar a vontade de ler, era apenas um estudante adolescente em crise de criatividade, acomodado, perdido entre os estudos e entre as indecisões dessa fase da vida. A verdade é que eu não pretendia decidir nada, nem estava em crise existencial, só uma vaga angústia de se sentir vivo em meio à indisposição das palavras.
Comecei a me desfazer em palavras.
Às vezes, à noite, numa dessas noites em que pondero comigo a vida, sou assaltado por uma inspiração e um impulso de escrever. Cautelosamente, no escuro, tateio com a mão a cabeceira, encontro carteira, chave, e outros objetos que costumo depositar lá e, finalmente, acho a caneta. Com cuidado, trago até mim e escrevo na outra mão o que andei pensando; tento ser o mais sintético possível, escrever de modo que no outro dia, quando acordar, consiga me lembrar de tudo que pensei. Escrevo na mão, sem enxergar, e as palavras são imprecisas, por vezes se atropelam. Às vezes, me levanto e vou até o computador, que está sempre ligado e eu só preciso ligar o monitor. Abro o bloco de notas e me ponho a escrever. É claro que as palavras, aquelas nas quais estive pensando durante o tempo de vigília, se perdem, mas o que me preocupa mesmo são as ideias principais. Tantas vezes me levantei pra escrever aqueles versos que surgem num lampejo, aquelas palavras que parecem se concatenar e se envolver umas com as outras de modo que produzam sensações, e tantas vezes me decepcionei ao visualizá-las no monitor, tendo que voltar frustrado à cama. Ou no outro dia, quando tinha escrito na mão a ideia que desencadearia todo o texto, e ao tentar desenvolvê-lo, as palavras se tornam escassas, não as encontro, a ideia não me parece mais tão boa, tão interessante quanto imaginava, e as palavras me traem, talvez me traiam.
Me pergunto se voltei a escrever poesia depois dessas tentativas. Talvez não devesse reler o que escrevo, é como se as palavras tivessem validade para mim, perdessem o vigor, e lentamente perdessem o sentido e a verdade, desvanecessem. Lembro daquela tarde em que ficamos calados, sentados na sombra daqueles coqueiros, diante do mar, quando nossos amigos mergulhavam e nossos pecados nos constrangiam; fumávamos e isso era a única coisa que nos ligava, compartilhar o isqueiro, e eu remexia na mochila, sem saber se pegava o livro para me distrair, ou o caderno para escrever os pensamentos e os desejos reprimidos, mesmo sabendo com certeza que, na hora em que derramasse a tinta da caneta na página, as palavras escasseariam. O silêncio se prolongou e nossos amigos voltaram, conversamos e rimos enquanto voltávamos pra casa, e você caminhou de costas, brincando com suas pegadas, invertendo a lógica das ações, como se assim voltássemos no tempo, como se, ao invés de voltarmos pra casa, as pegadas simplesmente fossem para debaixo daqueles coqueiros. E enquanto as pegadas dele voltavam, as minhas continuavam em frente, e assim nos desencontramos para sempre, pois as antigas pegadas que nos levaram ali foram inevitavelmente apagadas tanto pelo tempo quanto pelas águas do mar. E agora as palavras rememoram o que se passou, e parece que elas se escrevem por si só, como se se inventassem, como se se reinventassem. E sobre o tempo o que é que se pode dizer? Em quantos minutos depois um momento pode se transformar em passado, em memória? Quando, pensando bem, as coisas se transfiguram ou se esclarecem e aí percebemos o que aconteceu? Quando, naquele momento, sentados debaixo daqueles coqueiros, eu passei meu caderno de anotações e ele leu algumas palavras, e leu exatamente estas palavras que acabei de escrever, as confissões derramadas nestas páginas. E ele me passou de volta e eu li no seu rosto estas palavras e por isso eu as escrevo. E torço para que elas não tenham perdido sua magia.
Então... e se as palavras se perdem, desvanecem, então continuarei escrevendo, sem parar, para sempre, como os dias em que passamos juntos e a música tocava 16 horas por dia e parecia nunca acabar e não queríamos que acabasse. Não para, eu digo, e escrevo, sem parar, como o tempo que passa, o tempo que não para, e continuo escrevendo, enquanto o tempo transforma o presente em passado, e assim vou rememorando. Antes que elas me decepcionem. Vontade de desistir. Vou pra cama, lá as coisas deixam de existir. E assim acordo, tentado a escrever, ao mesmo tempo frustrado, exausto, e me deixo engolir pela cama, deixo meu corpo ser tragado pelo colchão, me afundar nas profundezas dos meus próprios sonhos derramados ali. E os dias se passam até que nós nos encontramos de novo, mas ele sempre em outro tempo, eu com ela, descansados da praia, ao redor nossos amigos, e nós estamos ansiosos para aproveitar a noite, porque a noite é uma criança devassa, e todos os espíritos libertinos começam a se exaltar. E eu penso quando poderei transformar isso em poesia.
Tenho lido tantos livros; cada um deles se torna um pouco de mim, cada um deles é uma experiência. Mas penetrar em seu universo, tentar desvendar seu mistério – é um absurdo. Quantas páginas não fechei, desnorteado, porque trouxe comigo mais uma experiência misteriosa, e porque me deixei absorver pelo seu mundo, apesar de não conseguir desvendá-lo completamente e por isso me senti um tanto quanto frustrado? Comecei a sentir cada vez mais que devia abandoná-los, deixar de ler, pois o mundo real é demasiado misterioso e complexo por si só. Mas é um erro, fugir é apenas uma solução fácil; deixei de tentar compreendê-los para senti-los, ou melhor, observá-los, deixar pairar meus olhos diante das palavras sem julgá-las, sem racionalizar mesmo o absurdo e a fantasia de suas situações. Tanto li Cortázar. E são tantos mundos que a mim se apresentam, já não me perturbo em desvendá-los, em compreendê-los, o mistério torna-se parte de sua natureza e de mim, e eu simplesmente os vivencio como o faço em meu próprio mundo, este que se apresenta diante de mim no fluxo do cotidiano, em seus milagres e mistérios.
Enquanto leio todos esses livros e me encontro num cantinho dentro deles, enquanto percebo meu mundo através deles, quando não faço parte de sua intensidade, de sua concretude, quando simplesmente observo, todos esses séculos que se derramam no nosso tempo – mas que tempo? – e tudo aparece num único instante, deixo-me pairar, abstraio-me, destoando diante da rapidez das coisas, e, então, sinto-me tornar cor. E quando, dentro do ônibus, à noite, percorro o caminho de volta a minha casa, e a cidade passa diante da janela, e eu tiro meus óculos e as luzes se expandem, e todas as coisas tornam-se embaçadas, se fundem, são apenas cores, a ansiedade desaparece, e nem a memória nem as expectativas resistem ao instante, e eu finalmente quase me esqueço de pensar. Minha mão, pela janela, acaricia o vento e parece flutuar, surfar em suas rajadas, parece autônoma, meus membros se fragmentam e, afinal, quase não existo. E tudo isso quase se torna poesia.
Cada vez mais me torno cor da cidade, não uma cor glamorosa, vivaz, que se distingue, mas uma cor que se matiza, que se esbate na monocromia da paisagem, do cotidiano; cada vez me vejo através de mim mesmo, abstraio-me, e me torno cor sob a luz e me apago no escuro. As lembranças se perdem por aí, os fantasmas se projetam no espaço, enquanto eu vivo os instantes, por minha juventude impensada e inconsequente e ansiosa.
O tempo – que tempo? – que atravessou séculos e que desemboca no nosso mundo contemporâneo, arrastando sua multiplicidade de informações, de culturas, de poesias. Em nosso tempo, o que podemos dizer, se todos podem dizer alguma coisa, se todos descobriram que podem escrever poesia, mesmo que não o façam em códigos verbais? Para que poeta em tempos de penúria, perguntou Holderlin, e para que, então, poetas em tempos de exuberância quando todos se sabem poetas, eu pergunto. Quando as informações não cessam e as palavras, jamais, e todos podem se pronunciar, porque sabemos que tudo é poesia, até os pós-modernos. E nossos próprios olhos nos confundem e tudo que precisamos fazer é redescobrir, é ver de novo e atribuir significados. Parei de escrever poesia por incapacidade, porque meus sentimentos estão de tal formas mesclados, felicidade e tristeza tornaram-se indissociáveis no espaço-tempo, que não conseguiria distinguir as palavras e suas acepções das minhas próprias sensações. Parei de escrever poesia e não tentei mais, jamais como ato de protesto, mas porque poesia não é palavra, apesar das atribuições românticas e sentimentais de nós (nós, por que não?), jovens poetas, jovens. Parei de escrever poesia porque posso ouvir minhas palavras na boca dos outros, porque posso encontrar o que quero dizer nos olhos e nas coisas em concreto, no silêncio das ruas e nas horas românticas do dia. Sim, tudo é poesia, basta olhar de novo, todos podem fazer poesia, os miseráveis, os rotos, os ignorantes, os ingênuos, aqueles prestes a desaparecer, as crianças serelepes hiperativas inconseqüentes caladas silenciosas com a inocência nos olhos e a esperteza nos atos e a verdade no coração, os intelectuais, os poetas do submundo, os poetas dos subúrbios, os homens de preto, os dias incontáveis – porque neles há vida –, a fome e a pobreza, os ativistas, os anjos, os deuses, os pseudo-intelectuais, os velhos poetas, os blogueiros, os jovens que incessantemente atualizam o twitter, os playboys, os ricos, os cachorros das madamas, o céu e a terra, os seres além-fronteiras, além-mares, além-mundos, os interplanetários, os sonhadores, os melodiosos, os bêbados deitados no próprio vomito, os cineastas do Central, as rachaduras nas calçadas, a prefeitura que tenta reconstruir a cidade, os pisca-pisca desregulados nas fachadas dos prédios, a falta de senso estético – mas tudo é sensação –, os abstracionistas, os meias-palavras, as menininhas Crepúsculo, Malhação, as prostitutas, os drogados, os estudantes, os terceiroanistas sufocados pelo vestibular, os protestos contra o aumento da passagem de ônibus, os ônibus depois da meia-noite e a cidade que passa através das janelas com o silêncio e a vida latente, o chão que reluz à noite sob as luzes dos postes depois da chuva da tarde, a manhã que surge suavemente em seus diversos tons até que o sol se instale reinante sob nossas cabeças e o cinza nublado as nuvens carregadas se dissipem, os moradores de cobertura, os maconheiros, os maloqueiros, os pedintes, os cheira-colas com suas eternas garrafas nos narizes, os insones às três da manhã sentados na varanda a TV ligada reluzente, os programas chatos, os filmes dublados, os jovens atores, os velhos, os rangidos metálicos dos automóveis, o congestionamento nas principais avenidas e estradas e a vida que poderia surgir daí através de Cortázar, as cartas que guardam tantas palavras de amor e de perdão e de confissão e não são lidas, e são rasgadas, e são queimadas, e são retornadas, e são lidas através de visões difusas pelas lágrimas, os presentes rejeitados, aqueles que nunca foram dados, aqueles recebidos com carinho e cumprimento, os amantes nas lanchonetes, percorrendo os corredores do shopping center, as roupas que não couberam porque elas estavam gordas, ou magras demais, as roupas que não puderam ser compradas, as roupas que se desgastaram e foram doadas, os gestos simples, os pequenos gestos, os gestos que passam despercebidos, os amores da vida que não se reconhecem no corredor do banco, os apaixonados, os platônicos, os rejeitados, a primeira noite no motel da namoradinha, a primeira noite da virgem quando no mundo não há mais virgens, os santos, os demônios, os eremitas, os ascéticos, os sofredores, os crentes, os velhos cristãos dentro da capela ajoelhados palmas juntas rezando mil ave-marias pedindo perdão pelos pecados pedindo proteção para a família pedindo uma morte rápida e sem dor, os velhos que se sentam sobre as pedras em frente ao mar e se põem a ler (isso ainda existe) os clássicos ou os livros de fantasia Harry Potter Crepúsculo Brumas de Avalon ou os livros espíritas, a Bíblia aberta num cômodo especial no meio da sala, o café da manhã com a família reunida, os nerds, os viciados, os retratos da família espalhados pela casa, os retratos das antigas gerações, os sorrisos ingênuos, a verdade que transcende a matéria física, mas que parte dela, as luzes desfocadas através dos olhos do míope, o vento no rosto no automóvel em alta velocidade, a adrenalina, a sensação de que tudo é paz e tranqüilidade e que seu mundo e seu tempo são outros, e que as coisas para cada um são assimiladas, percebidas em seus tempos específicos, e as músicas, ah, algumas delas me fizeram sentir a verdade, as músicas nas rádios, cheias de ruídos e chiados, no som de alta potência, na balada, no fim da balada quando todos cantam juntos, bêbados, exultantes, satisfeitos ou não, cheios de alegrias que se derramam em forma de cerveja e lama pelo chão, o coração pulsando desejoso, o eterno desejo, incessante, incontrolável – um dia vai explodir –, os desejos e a ânsia de satisfazê-los que revolvem o estômago e sufocam o coração. Sim, todos podem dizer alguma coisa, quem sou eu para me por a escrever, então? E se sabemos que tudo se interdepende, e que o mundo não anda por si só, então que todos tomem seus próprios rumos, por que não? Se não há mais nada a dizer porque tudo já foi dito, só nos resta as redescobertas, captar o óbvio, mesmo em toda sua ambigüidade, viver a intensidade do momento, observar as coisas e se abstrair nelas. Pus-me, então, a escrever haicais.