"Deus perdoa os que fodem", Tinto Brass.
Sempre achei que nunca contamos tudo. Aquele detalhe, um gesto, uma palavra, o olhar deflagrador entre todos os outros, a confirmação de que os olhares precedentes não se esbarraram por pura coincidência, por acaso, mas porque se atraíam. Talvez não soubesse dizer qual, dentre todos, foi aquele que legitimara alguma paixão e confessara a intencionalidade do gesto. Aquele instante infotografável, irregistrável. Talvez um sorriso. Talvez. Não existe lógica matemática que formule todos os gestos, palavras, sorrisos, insinuações que me levaram até ela.
Um tanto distante um do outro, sim, mas em algum ponto nossos pensamentos se tocavam. Em algum ponto adimensional, onde se desfaz, por leis inconcebíveis e específicas, a validade do nosso conceito de espaço-tempo. Sabíamos, no entanto, e é isso que importa, que nossos espíritos se tateavam e se descobriam. E quando nossos olhares se esbarravam, era porque precisávamos reforçar a linha que nos conectava espiritualmente e nos certificar de que essa linha não era frágil ou apenas um equívoco. Por isso o impacto: um soco no peito, uma mão que constringe o coração e que o tensiona com mil emoções, com todas as emoções que implodem de uma paixão. E por isso o suspiro depois que nos virávamos, cada um para seu grupo de conversa. Emergíamos de um estado quase hipnótico, apesar de milesimático; mas como um corpo que se afogava e finalmente encontrasse ar para respirar, a tensão se dissipava aos poucos e deixava seqüelas, vestígios. E a vontade de nos encontrarmos de novo no olhar.
Era uma troca espontânea de volúpias. O desejo alimentava-se dos olhares, nossos espíritos se atraíam, e nossos corpos sentiam a necessidade do toque. Distraíamo-nos nas conversas, nas piadinhas, e de vez em quando conseguíamos trocar palavras diretas: comentários irrelevantes, que se dispersavam e se desfaziam nos ouvidos, restando apenas o eco da voz do outro, como uma espécie de recordação, não para ser contemplada, não uma voz enaltecida e adocicada pela paixão, mas como uma identidade, que revelava mais de seu locutor do que as palavras ditas poderiam fazê-lo. E nessa linguagem polissêmica e incerta que é a troca de olhares, nos revelávamos e nos insinuávamos, nos comunicávamos verdadeiramente, num fluxo desordenado de consciência, de emoções, que não se distinguiam e que se confundiam no reflexo atordoante da íris, de onde não podiam transpassar.
Nenhuma fórmula matemática, até agora, só o desejo vago de descrever tudo, sem evitar, no entanto e infelizmente, a redução dos fatos e das impressões. Talvez poesia fosse a melhor linguagem para transmitir as sensações daquele momento, mas teimo em tentar revisitar os fatos através da memória, revivê-los e transcrevê-los. Eu deveria me calar. Algumas coisas guardamos somente para nós. Mas quando os sentimentos transbordam, é preciso desabafar e despejar o excesso em algum lugar. Escolhi o papel e por isso os garranchos e as manchas, a prova de que as palavras não conseguiram dizer tudo ou que se equivocaram no que disseram.
A madrugada absorvia os últimos ecos do dia, o silêncio da noite se espalhava pelas ruas. Só o bar onde estávamos era imune; a balbúrdia deixara ecos de palavras avulsas suspensos no ar, não se distinguiam as vozes, nem se identificavam os donos. Já ia a tantas a madrugada, a música tocava, mas era possível perceber os ruídos e as falhas das caixas de som. Apenas um murmúrio tranqüilo das conversas alheias, um murmúrio cansado da euforia de outrora. Sentia-se o ar gélido e úmido da madrugada, e os objetos faziam-se mais claros e resplandecentes para a visão um pouco atordoada pela embriaguez. Detrás de nossas mesas, as garrafas de cerveja se entulhavam, vazias, ou quase vazias, como tudo o que tínhamos para dizer ou poderíamos dizer. Chovia lá fora, uma garoa fininha, mas que entrava como frias agulhas na pele. Brincávamos com nossos cigarros e desmanchávamos seus pequenos e frágeis cilindros de cinzas, quando alguém se despediu para ir embora. Decidimos, então, irmos todos de uma vez.
Teria sido a distância espacial, mesmo pouca e transitável, desobstruída e sem obstáculos intransponíveis, que nos impedia de nos tocarmos? Beijinhos e abraços de despedidas, a cordialidade ingênua do aperto de mão entre amigos, até que ela se aproximou. Um pervertido teria aproveitado a oportunidade para satisfazer seu desejo táctil. Abraçamo-nos, com a cordialidade de recém-conhecidos, mas não com ingenuidade e intenções comedidas. E foi como um golpe psíquico, hipnótico. Nossos corpos ataram-se, enquanto nossos espíritos descarregavam cargas elétricas de efeitos atordoantes; nossas pulsões evadiam-se e era possível sentir o impacto sísmico que tremulava os corpos de um e de outro; nossas cabeças entrelaçadas, ela descansava a dela no meu ombro; um abraço cordial de despedida que se prolongou por pelo menos mais um segundo que o normal e foi suficiente para dissolver dúvidas e consolidar certezas. Senti seu cabelo e sua nuca, pareciam mais suaves aos meus dedos. Seu corpo parecia suspenso e entregue. Ao afastarmo-nos, seu rosto friccionou-se ao meu até as últimas células que circundavam os lábios; sua boca tão milesimaticamente perto da minha, e, no entanto, tão distante de um beijo, tão impossível, tão inalcançável. Até o último momento em que nos olhamos um nos olhos do outro, como se comunicássemos nossos protestos por essa oportunidade desperdiçada. Minha mão deslizou-se por seu braço, como uma última carícia que desejasse a eternidade daquele instante. Deslizou-se até a ponta de nossos dedos, e como ainda atraídos energicamente, esqueceram-se suspensos no ar por alguns milésimos.
Efeito atordoante que me deixou alheio por alguns instantes, enquanto nossos amigos combinavam a volta para casa. Não me saia da memória aquele abraço, seu corpo quase entregue ao meu, deixando-se suspender, desejando o etéreo, minhas mãos que deslizavam nos seus braços até a ponta dos dedos, e aquele último olhar. E pensava nas oportunidades desperdiçadas, nas possibilidades, nos finais secundários.
Ecos de gemidos ofegantes, o suor e a saliva libidinosa, o travesseiro, como um corpo indefeso, apertado e abarrotado entre os braços, os lençóis manchados caídos ao chão, o coração sísmico pulsante, pensamentos eróticos tonitruantes, desejos concupiscentes da ingenuidade infantil de quem desconhece o pecado, transe alucinante de quem chega ao limiar do sono e não consegue se libertar da capa negra de sonhos abismais que o encobre. Distração imprevisível que me pegava de surpresa; e eu me pegava absorto, observando o nada, e o desejo à flor da pele. Num eterno navio sem mar, sem terras à vista, só o pensamento distante, além, e o brilho nos olhos de quem sonha acordado. E eu flutuava na correnteza dos errantes, sem atenção para cachoeiras e redemoinhos, apenas à deriva, com a dor e a vontade de quem acaba de se apaixonar. Segredos que só a cama e o travesseiro guardariam como máculas. E que ressoariam para sempre nos ouvidos de quem os auscultasse.
Durante semanas, pensei nela. Não por estar apaixonado, mas pelo impacto do ineditismo do momento que nos uniu. Um golpe hipnótico atordoante. Diria que, se a vida não fosse delineada pelas veleidades do destino, teria sido produto dos acasos o fato de estudarmos no mesmo centro científico da universidade. E eu jamais a teria notado passar ao meu lado, como tantas vezes deve ter passado, pelo átrio ou pelos corredores do prédio onde estudávamos. O dia em que nos conhecemos nos marcou com magnetos que nos atrairiam sempre estivéssemos próximos um do outro.
O dia era assinalado pelas horas em que nos esbarrávamos, como uma relação discreta que tentava se adaptar a uma rotina, mas que nos divertia com a imprevisibilidade dos encontros casuais. Ainda que me sujeitasse a cumprimentá-la, com discrição e até uma certa timidez, na frente do seu namorado, não me importunava nem torturava a ideia de que ela estava comprometida. Conversávamos besteiras, quando nos víamos a sós. Eu tentava me aproximar, de alguma forma, mas talvez não fosse ousado suficiente para atravessar as barreiras da timidez e alcançar alguma intimidade. E quando eu a encontrava ao longe, enquanto percorríamos nossos trajetos particulares, cada um por seu caminho, sentia-me num filme, numa cena em slowmotion, nós dois no mesmo plano, os olhos dela nos meus, os passos e os ruídos sonoros não eram abstraídos de todo, mas abafados pela tensão do momento que obstruía meus sentidos e me deixava suspenso.
Tínhamos terminado as aulas, podíamos ir pra casa. No campus, pairava a melancolia do silêncio da tarde, e nós conversávamos futilidades. Ela disse que iria buscar alguma coisa em algum lugar e me chamou para irmos juntos. Entramos no prédio onde estudávamos. Subimos as escadas. Caminhávamos sozinhos pelo corredor. O sol escanteava-se por entre os prédios da cidade. O corredor estendia-se e já tínhamos percorrido um quarto do seu comprimento. E como nossos pensamentos confluíssem entre nós dois, telepaticamente, e as volúpias inflamassem nossos corpos e os magnetizavam, puxei seu braço e a beijei. Um ruído crescente tomou conta dos meus ouvidos. Não consegui aplacar a força tumultuosa das emoções; não houve distensão no ato. Como desmoronasse a razão, escutei o estrondo do abalo sísmico que atingira minha mente e o peso e a tensão do momento; me libertei das amarras da timidez e dos comedimentos sociais, mas não foi como voar, flutuar no espaço e deixar suspenso o espírito com a delicadeza dos amantes que, como penas, titubeiam no ar. Pelo contrário, mantive-me no chão, com o peso dos escombros da razão e de toda concretude da realidade. Mas fui correspondido.
Como descarregasse de uma só vez todas as vontades, com o ímpeto de uma pulsão desmedida, um vômito irreprimível, desenfreado, me afastei dela aturdido. Ela mostrou um sorriso de consentimento, de conivência, de aprovação, de paixão, de desejo satisfeito. Não sei. Nunca se sabe. Ela me apanhou pelo braço, deslizou por ele, como na primeira vez em que nos tocamos, e me levou à sala mais próxima. Entramos e assim que a porta foi fechada, ela me beijou de novo. Com as carícias ávidas e afoitas, tentamos satisfazer a necessidade premente de nos tocarmos, de sentirmos a pele um do outro a cada milímetro, em cada célula, uma vontade de pairarmos na plenitude do corpo um do outro. Era uma ânsia insaciável, ofegávamos, beijávamo-nos, mas o desejo transbordava nos corações, e não sabíamos de onde vinha a fonte que nos abastecia as paixões. Puxei sua blusa, que deslizou corpo acima, enquanto ela levantava os braços. Desfiz a ideia de jogo de turnos e eu mesmo tirei minha camisa, enquanto ela se desfazia das calças. Depois, ela tirou as minhas calças, e levou junto o que tinha por baixo. Ela me conduziu até uma banca, num leve empurrão com as pontas dos dedos, e ajoelhou-se diante de mim.
Nossa paixão durou os milésimos que um relâmpago demora a rasgar o céu, na mesma intensidade, com a mesma carga elétrica. Ela começou a me evitar, como se relutasse contra o desejo passageiro e incerto que alimentava nossa paixão, em favor do seu amor que quase pairava inerte num marasmo idílico, mas que tinha se modelado aos dias e às necessidades suas e de seu namorado, e não teria de sobreviver a tormentas e instabilidades da alma. Depois que transamos, naquele dia, ela me perguntou, quando já estávamos vestidos: “você acredita que eu amo meu namorado?”, e disse isso não como quem sente a culpa corroer-lhe a alma e deseja desabafar para aliviar a dor do remorso, mas como quem busca conivência e se sente à vontade para, francamente, deixar as coisas claras. Não duvidei, não duvido, hoje, e a admiro por não ter se arrependido. Eu me enviesei pelas armadilhas e ilusões de uma paixão que arde e inflama os sentidos e diz-se reconhecer como amor, mas que, afinal, não se realiza como tal. A verdade é que nunca acreditei no amor como uma pedra rara que se encontra nos confins do mundo, nas entranhas da terra, e que fosse única para cada ser humano. Para mim, bastaria a centelha daquela paixão que senti no dia em que nos conhecemos para acender algo mais, para nos enlevar, para, quem sabe, acordar em nós o amor.
Ainda nos encontrávamos quando comecei a namorar outra pessoa. Ela tentava me evitar, mas algo em nós pulsava e respirava ruidosamente. E só precisávamos nos encontrar, a sós, nos esbarrar por aí, para que a paixão reacendesse e acordasse com uma força que nos feria a carne. Sabíamos dos riscos, mas era implacável. Às vezes, andávamos juntos, eu com minha namorada, ela com o seu, e alguns amigos. Para não expor o grau de intimidade a que chegamos, evitávamos demonstrar provas de amizade incriminadoras. Talvez, a única coisa que nos denunciava estava no olhar, na maneira de como nossos olhos se encontravam, de como se olhavam e se enamoravam. Mas tudo que tínhamos para comunicar, através do olhar, dizíamos em poucos milésimos, de modo que seria impossível descobrir nossos segredos sem que se congelasse o instante exato em que nos olhávamos para analisar o brilho em nossos olhos que denunciava todas as intenções.
Deixamos de nos encontrar a sós. Rompemos. Como uma substância volátil, nossa paixão se expandiu e se destilou. Apenas um cheiro etílico forte pairava no ar, que ainda podia exercer sobre nossa carne um desejo, mas que evitávamos com certa maturidade. Nunca reprovei nossa relação, os impulsos voluptuosos que nos fazia transgredir as convenções e pular a cerca. Nunca entendi isso apenas como imaturidade, ímpetos descontrolados de um jovem; eu aceitei minha natureza e a tudo que ela estivesse predisposta. Não tenho remorsos. Teria costurado a vida de outra maneira, se a linha e as agulhas estivessem em minhas mãos. Teria continuado. Mas o tempo se encarrega de tomar o que dar, de unir e de separar, de construir e destruir.
No meu travesseiro, ressoam os sussurros longínquos que me recordam, no frio e no silêncio da noite, mesmo no recôndito do meu sonho, os segredos de um passado tão recente quanto remoto. E como um determinismo que atua sobre os sonhos, paira na atmosfera onírica um sentimento de nostalgia que me obriga a olhar para trás, mas que se evola no ardor das novas paixões que se personificam dentro de mim.
Não mais tento entender. Como tudo se desenrolou. Nada começou, nada terminou. Como palavras de um livro que escasseiam antes do ponto final, do desfecho. Como a tão pronunciada e banalizada frase, “a vida continua”, mesmo que aventuras como essa a permeiem sem permissão. Tantos acasos, tantas equações. E se não fosse o cálculo probabilístico, única matemática possível para equacionar o problema dos acasos, jamais saberia mapear o caminho que me levou até ela. E mesmo a probabilidade não poderia traçar nossos trajetos com precisão, pois faltariam os termos que identificariam as incógnitas da equação. Ainda não posso resolver essa questão.