Parte 2 de uma trilogia que decorre inversamente a vida do poeta Yusuf, Leite nos propõe uma experiência sensorial não diria nova, mas que é tendência na imagem cinematográfica dos diretores que se inserem na linha do cinema artístico. Um cinema que utiliza recursos naturais da própria paisagem, como a iluminação, Semih rechaça o artificialismo dos recursos comuns próprios do cinema comercial. Ademais, não é um filme difícil de digerir, pela sua beleza paisagística que atrai os olhares contemplativos. No entanto, é um filme que deve se desprender dessa visão superficial (que sobrepõe a imagem à estória) por estar carregado de símbolos em sua narrativa imagética.
Na verdade, me pergunto como metaforizar certos conceitos num cinema que procura aderir às teorias do olhar contemplativo característicos nas obras de diretores como, por exemplo, Tarkovsky. Se Tarkovsky prescinde das metáforas, mesmo que seu cinema seja um artifício poético, onde e como a semiótica poderá identificar e definir os signos de um filme que nasce de um paisagismo exacerbado, ou seja, principalmente do superficialismo da imagem. Se Semih consegue conceber seus próprios signos em suas imagens, então é preciso que eu faça uma revisão no meu olhar cinematográfico. Não é isso, no entanto, uma crítica, mas uma dúvida de um leigo como eu.
Voltando ao filme...
É importante destacar a beleza das imagens realçadas principalmente pelos cenários e pelas cores leitosas bem característicos do filme e que claramente aludem ao título. Como disse, não há iluminação artificial, mas para compor a cena bastam a iluminação natural do cenário, mesmo que não haja, e isso acontecerá em algumas das cenas já no final. O céu é um elemento bem recorrente, mas sempre aparece manchado pelas enormes nuvens esbranquiçadas. Semih prefere os cenários grandiosos, espaçosos, mas não relega de todo os cenários internos, nem prescinde do closer ou do primeiro plano.
A beleza do filme está entranhada, também, na simplicidade de sua narrativa. Para os olhares despretensiosos, o filme parece o registro de um adolescente que deambula aqui e ali, escrevendo poesias e trabalhando para a mãe. Mas a temática adolescência possibilita um universo de temas que se pode explorar e discutir, ou que serve de motivo para dissertações e estudos científicos sobre o assunto. O que, no entanto, descarta essa possibilidade, é a apatia e a inexpressividade do jovem protagonista Yusuf. Personagem, eu diria, atípico, que não encerra características universais presentes na juventude, Yusuf não sai à procura de nada, não se preocupa em se satisfazer fisicamente, ou satisfazer os vícios de sua efervescência hormonal, não questiona nada e não tem grandes pretensões. Na verdade, não parece se preocupar com muita coisa, exceto com sua mãe, que, viúva, se ver apaixonada de novo em determinada parte do filme.
Se Yusuf, portanto, não atende às características do típico jovem em crise existencial ou de identidade, ou se seus hormônios explosivos não o impelem à tentativa de satisfazer prazeres físicos, então ele personifica, nos moldes de uma visão romântica do artista, um poeta errante. Ou seja, Semih traz ao mundo um personagem um tanto metafísico. Se os problemas de Yusuf não são terrenos, ou melhor típicos, então são problemas artísticos que se encerram unicamente na arte. Mas Semih não explora a arte de Yusuf, ele simplesmente o persegue e o registra. A verdade é que Yusuf é um personagem alegórico, sim. É um poeta errante bastante humano e, ao contrário do que eu falei, não se encerra na arte. Talvez isso seja uma peculiaridade característica. Se assim for, Yusuf é um personagem bastante peculiar e traz à tona certas problemáticas do nosso mundo.
Exceto quando sai pra vender leite, a pedido de sua mãe, Yusuf caminha errante por quase todo o filme, sem objetivos nem grandes pretensões, como já disse. Yusuf não procura e, no entanto, sempre encontra alguma coisa, e só por isso é possível identificar e caracterizar o personagem Yusuf. Na primeira vez, encontra uma amiga com quem acaba pegando carona. Depois, encontra o professor a quem pede conselhos sobre suas poesias. Afinal, encontra uma garota por quem demonstra certa simpatia. Em nenhum desses encontros, porém, Yusuf obtém sucesso seja qual for seu objetivo. Com a primeira garota, Semih apresenta uma situação de incomunicabilidade evidente entre os dois personagens. O problema de comunicação, na verdade, está em Yusuf; essa hipótese é sugerida a partir do momento em que a garota, ao atender um telefonema, sai deambulando pelo cenário enquanto conversa longamente no celular; essa mesma hipótese será confirmada no decorrer do filme. Já o encontro com o professor, a ausência de comunicação também é evidente, mas de uma forma muito mais antipática. Yusuf e o professor bebem cerveja num café, sem trocar uma única palavra. Quando se pronunciam, não é para se corresponder, mas para simplesmente pedir outra cerveja. De outra forma, correspondem-se pelas trocas de olhares apáticas ou mesmo incisivas. A cena sofre um corte brusco no exato momento em que os dois conseguem trocar palavras. Já no último episódio, a relação é mais simpática; Yusuf consegue manter uma comunicação estável, até fluente, eu diria, com a nova garota; os dois personagens não parecem se preocupar em procurar algo para dizer. No entanto, essa relação não é duradoura, não mais a encontramos durante a narrativa.
É interessante observar que essa incomunicabilidade não serve unicamente para atestar um problema recorrente na juventude ou na sociedade atual, mas para suscitar a preocupação de se encontrar um silêncio, que hoje é incomum, nessa mesma sociedade. Tomando como voz o próprio Semih, ele nos atenta, em entrevista, que o silêncio em seu filme não é o silêncio absoluto de todas as coisas, mas um silêncio que ressalta o murmúrio da natureza, e ratifico com minhas palavras, que serve como oportunidade para se escutar o que não se diz entre os homens. Não estou sendo aqui naturalista como o filme, apenas analisando uma leitura possível aos meus olhos.
Desse silêncio onde paira o espírito da incomunicabilidade, os planos terão obrigação de nos atentar à paisagem, já que os personagens não nos têm muito a oferecer. Por isso, Semih capta paisagens naturais, na maioria das vezes, ao mesmo tempo em que situa seus personagens no início desse plano. Muitas vezes, os próprios personagens observam essa paisagem junto aos espectadores. Nesse sentido, é um filme bastante contemplativo, apesar de que os personagens estão, quase sempre, à vista, para que não nos esqueçamos de sua estória.
Quanto ao tempo, o filme segue um ritmo um tanto quanto peculiar, apesar de seguir uma tendência artístico-cinematográfica atual, com planos fixos e extensas tomadas. Semih tenta estender o tempo perceptivo com seus planos fixos e demorados, mas quebra esse ritmo com alguns cortes que eu não diria dispensáveis para sua diegese. Em alguns diálogos, principalmente nos que os personagens se situam em espaços diferentes, o corte é bastante recorrente. Essa é uma grande diferença entre Semih e, por exemplo, Tsai Ming-Liang. Este último aproveita os cenários de forma que os cortes sejam completamente descartáveis, mas permitindo aos personagens que interajam entre si ou se comuniquem. Esses cortes, no filme de Semih, conferem uma certa dinamicidade que o filme prescindiria, devido a sua estética e a sua ideia inicial. Mas Semih não se preocupa em seguir parâmetros ou tendências.
Leite é um filme do qual não despontará nenhuma epifania. Mas vale a pena vê-lo, seja pela beleza de sua simplicidade, seja pela simplicidade da própria narrativa ou da própria estória, ou mesmo pela experiência memorialística, mas nesse sentido, será imprescindível ter em mãos os dois outros filmes que completam a trilogia de Yusuf.